quinta-feira, 9 de abril de 2015

OSWALDO MENDES: “O TEATRO E O JORNALLISMO ME AJUDARAM A SER GENTE”

Por: Dirceu Alves Jr. em Blog do Dirceu/Veja SP/ abril 2015





Oswaldo Mendes fala sobre os palcos, as redações e Elis Regina: “o Teatro e o jornalismo me ajudaram a ser gente”


Aos 68 anos, o paulista Oswaldo Mendes olha para trás e agradece aos amigos dos palcos e das redações por tudo o que viveu – e vive. Jornalista, ator, dramaturgo e diretor, ele pode dizer que se divide entre esses dois campos há cinco décadas e, assim, um complementa e consolida o outro. Formado pela Escola de Arte Dramática (EAD), Mendes ainda passou por diversos veículos de comunicação e, durante uma entrevista, conheceu Elis Regina. Para a cantora, dirigiu o show “Essa Mulher”, em 1979, e colaborou na concepção de “Saudade do Brasil”, no ano seguinte. Com onze peças escritas e encenadas, Mendes levou um susto grande em 2013, extraiu um câncer da bexiga e, dessa dor, nasceu o espetáculo“Insubmissas”, que, depois de cumprir temporada no Teatro de Arena Eugênio Kusnet, segue direto para o Ágora Teatro. “Nesta sobrevida, depois do câncer, fiz ‘Insubmissas’ como um tributo às mulheres, fontes de toda vida”. Agora, Oswaldo Mendes nos conta um poucos mais de tudo isso.
Vou começar com uma curiosidade minha… O jornalista deveria ser uma pessoa conectada com a realidade, com os pés no chão e pouco afeita a um universo ficcional. O ator, por sua vez, precisa de tudo ao contrário. Tem que “acreditar na mentira” e convencer os outros de que aquilo é “verdade”, precisa de uma imaginação solta e mais fantasiosa, deve ser menos exato digamos assim… Um jornalista pode ser um bom ator? 
Não vejo conflito em ser jornalista e ator, nem contradição entre o jornalismo e o teatro. Ao contrário, são atividades que se completam e dialogam. Logo, não aceito que “o ator tem que acreditar na mentira”. Imaginação e fantasia não são sinônimos de mentira, longe disso. Fernando Pessoa prestou um desserviço ao dizer que “o poeta é um fingidor”, conceito que querem estender ao ator. Nem o poeta e nem o ator são fingidores. Para o poeta não sei, mas a mim ofende reduzir o trabalho do ator a um fingimento. Prefiro ver o ator como alguém que observa e pensa o mundo e que o mostra ao espectador. Brecht nos diz isso claramente e, antes dele, Shakespeare, nas recomendações de Hamlet aos atores. O narciso pode ser qualquer coisa, até ator, mas o ator não pode se limitar a ser um narciso. Ele deve estar sim conectado com a realidade o tempo todo, se quiser que o teatro continue a ser espelho do mundo e mostre a cada um a sua verdadeira face. Há cada vez menos espaço para o ator que não estuda, não pensa e não se informe sobre o mundo.
Você seria o artista que é sem sua bagagem jornalística?
O teatro me ajudou no jornalismo. Ao entrevistar uma pessoa, fosse ela quem fosse, aprendi a tratá-la como personagem, a me aproximar aberto e, seguindo a lição de Brecht, “observar o estranho como se ele fosse conhecido e o conhecido como se fosse estranho”. E sabendo que as pessoas, como os personagens de teatro, se definem pelos seus atos e não pelo que dizem de si mesmo. Por fim, diante de um fato, observá-lo de vários pontos de vista possíveis antes de formular uma síntese sobre ele. Costumo brincar que Sófocles e Shakespeare seriam ótimos jornalistas pela facilidade com que sintetizariam suas narrativas a manchetes certeiras. Enfim, o jornalismo me ajudou no teatro, ao afastar a ideia do ator como um poço até aqui de vaidade e sem nada na cabeça. Talvez por ter começado adolescente a trilhar os dois caminhos, nunca vi barreiras para a convivência do palco e do jornalismo na minha vida. Só uma, de tempo. O fechamento em uma redação coincide normalmente com o horário dos espetáculos.
Mas você seria esse artista sem a bagagem jornalística?
Não seria o ser humano que sou, com todos os meus muitos defeitos e alguma eventual qualidade, sem o teatro e sem o jornalismo, sem o exercício da escrita e do estudo permanente que essas duas atividades me impõem.
Você falou em teatro desde a adolescência, mas estreou como ator em 1972, certo? 
Estreei profissionalmente como ator em 1972, depois de concluir a Escola de Arte Dramática na USP. Na verdade, eu estreei dez anos antes em Marília com  a peça “Chá e Simpatia” de Robert Anderson, numa época em que a primeira escola de muitos atores era o teatro amador ou universitário. Até me mudar para São Paulo em 1969, entre outros espetáculos fiz Brecht (“Os Fuzis da Senhora Carrar”), Molière (“Tartufo”) e Edward Albee (“Zoo Story”). Depois de atuar no teatro, no cineclubismo, na imprensa local e na militância estudantil, promovendo a agitação cultural na cidade, conclui que meu tempo de Marília havia se esgotado. Aos 22 anos, juntei as economias e me mandei para São Paulo. Meu pai ferroviário e minha mãe costureira tinham a sabedoria de não se contrapor às decisões dos filhos. Vim fazer a Escola de Arte Dramática, que eu já havia frequentado por seis meses, em 1966, em um curso de dramaturgia e crítica com professores como Amatol Rosenfeld, Décio de Almeida Prado e Augusto Boal. Os primeiros meses daquele 1969 foram difíceis. Graças à indicação de Paulo Mendonça, crítico de teatro e meu professor, durante três meses, eu dei expediente diário como repórter da Folha de S. Paulo, mas o jornal não me pagava e nem me contratava. Morando com uma amiga, que me estimulou a dizer não a um chamado do Banco do Brasil para ser escriturário, fui salvo da falência pessoal quando consegui trabalho no jornal Última Hora e passei a ver um salário no fim do mês. Na UH, eu fiquei uma década, até assumir a editoria do suplemento Folhetim e, em seguida, a subsecretaria de redação da Folha de S. Paulo.
E deu para acumular as duas coisas por quanto tempo?
Nesta nova função, fazer teatro e jornalismo ao mesmo tempo se tornou impossível. Como já disse o fechamento de um jornal coincide normalmente com o horário dos espetáculos. Isso me impôs um período de recesso como ator, mas continuei como autor de “Revista do Henfil”, “Saudade do Brasil”, “Um Tiro no Coração”, “Noite na Taverna” e como diretor em “São Paulo-Brasil”, “Essa Mulher” e “Sinal de Vida”. Até o dia em que entrei na sala do então diretor Bóris Casoy e pedi que me mandasse embora para eu receber o fundo de garantia. “Vai para onde?”, ele quis saber. Vou voltar para casa, respondi (e para o teatro, pensei). Bóris riu e me mandou pedir demissão para o seu Octávio Frias, dono do jornal. Eu fui. Não consegui ser mandado embora. Tive de esperar mais de um ano até que um convite para ser editor de cultura da revista Visão me tirou do jornal. Depois, ainda precisei de mais alguns anos até voltar, em definitivo, para casa e para o teatro. E lá se vão 25 anos. Não ter dependentes, nem filhos e nem pensão alimentícia para pagar, ajudou na decisão de viver sem a segurança de um holerite no final do mês.
É visível no seu trabalho a importância da informação, principalmente na construção dos textos. “Insubmissas” obviamente vem precedida de uma intensa pesquisa. Ali, temos noções de datas, um enredo calcado em fatos reais enfim…
Não é possível escrever teatro sem estudo, ainda mais teatro de ideias ou personagens históricos. Sei de autores que com uma piada, sentam e em uma noite ou alguns dias escrevem uma peça. Gostaria de ter esse talento intuitivo, espontâneo. Não tenho. Escrevi uma peça assim, uma comédia de maus costumes, quase inédita. Foi tudo que consegui. Quando se estuda para escrever uma peça de teatro, o processo é semelhante ao de uma reportagem. A diferença está no resultado que se quer. A gente coleta dados, cruza informações, anota datas e nomes para, em seguida, abandonar tudo, sentar e escrever, deixando a imaginação conduzir a narrativa, recorrendo à pesquisa quando necessário, para recuperar uma data ou uma frase entre aspas de um personagem. Como não sou historiador e nem biógrafo, só o teatro me interessa e a consciência de que os personagens se definem pela ação, que precede e dá consistência ao pensamento. Colocar duas ou mais pessoas conversando, ao contrário do que se vê por ai, não é teatro. Embora muitos proclamem o contrário, o teatro tem regras e é bom conhecê-las nem que seja para contrariá-las. Pode-se fazer poesia sem rimas, sem métrica e sem ritmo, mas se alguém quiser fazer um soneto terá de seguir regras. O mesmo vale para o teatro. Se estiver atento a isso, o autor saberá a diferença entre uma peça, um conto e uma reportagem.
“Insubmissas”: texto de Mendes dirigido por Carlos Di Palma segue para o Ágora (Foto: Zuza Blanc)
Como ficar atento e equilibrar os dois lados para não criar uma dramaturgia com cara de reportagem?
Na reportagem, a imaginação é prisioneira dos fatos. No teatro, os fatos são alimentos da imaginação, pois o que interessa ao teatro é a condição humana investigada até as últimas consequências. Os gregos já faziam isso quando pegavam episódios e personagens da sua história mitológica para escrever as suas tragédias. Ainda me espantam a ignorância e o preconceito de amigos do teatro, incluindo jornalistas da área, em relação do trabalho do Arte Ciência no Palco, grupo em que estou há quinze anos. Ou nos ligam à divulgação científica ou, num misto de elogio e rejeição, acham que é muito “papo cabeça”, como definiram nosso espetáculo de maior repercussão, “Copenhagen”, que estreamos em 2001. Essas pessoas esquecem que, muito antes da era cristã, “Prometeu Acorrentado” de Ésquilo, falava de ciência, de busca do conhecimento. Sob o impacto da física nuclear, Bertolt Brecht escreveu em 1948 um livro de poucas páginas, “Pequeno Organon”, em que reflete sobre o “teatro da era científica”, o teatro para uma época de constantes transformações. Hoje cabe ao teatro a discussão das grandes questões, como no passado, deixando o cotidiano aos cuidados da telenovela e de certo cinema que se esbaldam na exploração da libido e dos costumes sociais com brilhante e inconsequente competência. Além do mais, como entretenimento e diversão, o teatro perde para qualquer bugiganga que se leva na palma da mão ou qualquer show de humor adolescente que se multiplica pelos palcos e telas do País.
“Insubmissas” é uma peça de mulheres escrita e dirigida por homens. Fica mais fácil trabalhar com tantas mulheres em se tratando de um espetáculo de personagens reais, em que cada uma delas já carrega um contorno mais ou menos definido? 
Quando as atrizes do Arte Ciência no Palco me desafiaram a escrever sobre mulheres na ciência, eu aceitei e disse até que dirigiria a peça. Por conhecê-las em longa convivência dentro e fora do palco, eu tinha definida na cabeça a atriz para cada personagem. Escrevi Marie Curie pensando na postura, na voz e no temperamento de Selma Luchesi. O mesmo com Bertha Lutz (a atriz Adriana Dham), Rosalind Franklin (papel de Mônika Plöger) e Hipácia de Alexandria (interpretada por Vera Kowalska). Quando terminei, percebi que não poderia ser eu o diretor, que o texto pedia outro olhar, mais enriquecedor que o meu. Sempre defendi que autor só deve dirigir a própria peça se não houver alternativa. Num primeiro momento pensamos em convidar uma mulher para dirigir. Depois de algumas buscas frustradas, propus que o ator Carlos Palma dirigisse porque ele, como cenógrafo e artista plástico, já havia me falado da ideia de uma instalação como espaço de representação para “Insubmissas”. Sem falar que, como criador do grupo, as questões da ciência lhe são familiares.
Você é do tipo de autor que acompanha ensaios? Fica por perto durante o processo ou deixa mais na mão do diretor – já que, sendo também um diretor, sabe que é melhor não interferir tanto?
Dei total liberdade para ele e para as atrizes. Não quis assistir aos ensaios e pedi que não me falassem nada, nem de eventuais cortes ou trocas no texto. Não vi nem o ensaio geral. Assisti pela primeira vez ao lado do público, no dia da estreia, em janeiro. É uma rara emoção ver as palavras e as personagens brotarem na sua frente como algo absolutamente novo. O autor nem sempre é o melhor leitor da sua obra, pois pensa que sabe tudo e se esquece de que as personagens vivem por si mesmas quando ganham corpo, forma e emoção no palco. Por tudo isso, ainda bem que não dirigi “Insubmissas”. A peça saiu ganhando. E eu também, como autor.
A biografia “Elis Regina – Nada Será Como Antes”, lançada pelo jornalista Julio Maria, mostra que você teve uma relação bastante próxima com a cantora. Como vocês se conheceram e de que forma esse contato virou amizade e parceria profissional?
O teatro e o jornalismo me ajudaram a ser gente, a me tornar um ser humano mais suportável e a domar a intolerância, raiz de todos os nossos conflitos. O teatro me ensinou que, como personagem, eu não me basto, sou insuficiente, que preciso e dependo do olhar do outro. Viver em diálogo é melhor que em monólogo. E o jornalismo me permitiu conhecer algumas figuras determinantes na minha formação. De muitos que me aproximei profissionalmente, como jornalista, acabei me tornando amigo, mesmo com eventuais diferenças de temperamento. Com Elis foi uma convivência leve. Como diz o caipira, a gente se dava bem. Eu a conheci ao entrevistá-la numa casa de shows chamada Patropi, na Rua Cubatão, quando ela estava se mudando para São Paulo. Na mesma época, Elis aceitou cantar na primeira festa de entrega de prêmios da recém-criada APCA – Associação Paulista de Críticos Teatrais, da qual eu era secretário, em 1973. Eram outros tempos, a gente ligava para a casa do artista e ele atendia, não havia a barreira das assessorias e da tietagem burra desses nossos dias. A gente se aproximou mais depois da estreia de “Falso Brilhante”, quando ela foi minha assistente na direção do espetáculo “São Paulo – Brasil”, com o César Camargo Mariano e banda, e quando trabalhamos juntos no show “Essa Mulher”, que eu dirigi para ela.
O que Elis ensinou a você?

O que Elis me ensinou? A gostar de comer pipoca com café, feitos na hora. Sei lá. Quando foi embora ela me ensinou que o bom da vida é a gente envelhecer junto. Por isso da Elis é disso que eu mais sinto falta. De a gente estar envelhecendo juntos. Porque da cantora, não sinto falta não. Ela continua viva e, como diria Walter Silva, “cantando cada vez melhor”.

(http://vejasp.abril.com.br/blogs/dirceu-alves-jr/2015/03/26/oswaldo-mendes-insubmissas-teatro-elis-regina/)