sexta-feira, 31 de julho de 2015

O TEATRO DA MORTE DE TADEUSZ KANTOR

Em 2015 se comemora o centenário de Tadeusz Kantor. Pouco conhecido do público brasileiro, Tadeusz nasceu na Polônia em 06 de abril de 1915, durante a primeira grande guerra e faleceu e 1990. Durante a sua vida viu invasões alemães e russas e atravessou a opressão e o horror. 

Em sua homenagem, apresentamos um breve resumo da carreira desse grande artista que deixou as suas marcas e foi referência na vanguarda teatral.




Em agosto o SESC Consolação, em São Paulo, comemora o centenário do artista polonês com a exposição MÁQUINA TADEUSZ KANTOR, em cocuradoria com a Galeria Foksal, na qual Kantor criou as suas primeiras grandes obras.









O Teatro da Morte de Tadeusz Kantor

Texto de Claudia Venturi


Kantor foi pintor, cenógrafo e diretor teatral – representante de um movimento de pesquisa da vanguarda que tendia ao abandono da lógica ligada ao acaso e a improvisação, buscando novas estradas expressivas. Dedicou o seu trabalho a estudar a arte e a linguagem artística anti-naturalismo.

O seu interesse pelo teatro iniciou nos anos 1930, na academia de Belas Artes da Cracóvia, durante os seus estudos sobre as artes figurativas, conjugando tendências artísticas das mais importantes no período entre os sec. XIX e XX: simbolismo, expressionismo, Bauhaus - passando da pintura ao teatro. Foi fundador do “Teatro Clandestino” e, mais tarde o “Cricot” (o seu teatro), uma espécie de café literário. Tadeusz Kantor manteve o seu trabalho teatral até mesmo durante a segunda guerra quando encenou com o seu grupo em um prédio bombardeado.

A dramaturgia, no seu caso, não se refere ao retorno da escrita sobre a ação, mas a uma ideia de ‘escrita cênica’, um projetar rigoroso da estrutura do espetáculo, mesmo nos casos em que o texto seja composto por uma série de ações físicas de duração indeterminada.

Na metade dos anos 1950, Tadeusz e o seu grupo Cricot2 propuseram-se a estudar as relações entre as artes figurativas e performáticas, experimentando novas formas de arte que estavam se difundindo em todo o mundo, como o environment e o happening.

No início dos anos 1970 começa a repensar o percurso artístico, pesquisando novas formas para enfrentar o problema da dialética entre o passado e o presente. O tema fundamental do teatro de Kantor é a memória e o além. Recordações e nostalgia estão presentes inclusive nas músicas. Utilizava muito as máquinas e tinha no armário um símbolo importante, pois representa o local onde se colocam e se fecham as coisas acumuladas durante a vida.

O êxito desse longo processo de reflexão foi o espetáculo “A Classe Morta” (1975), considerado um dos espetáculos mais importantes de toda a vanguarda teatral . Esse espetáculo não era baseado sobre um texto escrito, mas era composto por uma série de cenas breves nas quais velhos moribundos tentavam desesperadamente retornar às cadeiras da escola, às vezes levando sobre os ombros manequins, representando eles mesmo quando crianças. Tudo acontecia sob o olhar irônico e melancólico do próprio Kantor, cuja presença em cena, no papel de diretor, dava a toda operação um sabor fortemente autobiográfico, impelindo o espetáculo de forma a refletir sobre o sentido do teatro e o papel do artista. Aliás, Tadeusz estava sempre presente em seus espetáculos, para romper com as convenções teatrais – entra, passa, olha – como um diretor de orquestra.


Em “A Classe Morta” a realidade é reconstruída em cena, o tempo ocorre no ponto do passado, da memória subjetiva e da histórica. A cenografia é dadaísta, repleta de símbolos, aproximando imagens em contraposição – a esperança da cruz levada por um padre e a violência da guerra na falta de expressão de um soldado que se move como um boneco de corda. A representação é anti-naturalista, seguindo a linha de sua pesquisa, na qual os atores se movimentam como marionetes.

Tadeusz Kantor era extremamente interessado no discurso das marionetes e na expressão corporal delas – o duplo. O ator estava sempre atrás do seu manequim, ou com um manequim nas mãos, às vezes com outro objeto. O ator não se separa do seu manequim que é o símbolo do “eu” e de tantas outras coisas. Representar com um manequim nas mãos dificulta a identificação do ator com o personagem, contrapondo novamente o naturalismo. Toda a ritualidade da escola é apresentada em “A Classe Morta” de forma quase mítica: erguer a mão, recitar poesia, levantar-se e sentar-se quando o professor chega ou sai. Ele buscava a destruição dos ritos, utilizando-se também de um pouco de técnica de clown.

O teatro de Kantor é permanentemente dirigido ao “atrás” e ao “interior”. Ele mesmo o definia como “Teatro da Morte” – para restituir, através da memória, a dimensão de um passado que, permanecendo bem longe do ser – o lugar de construção do sujeito – se revela como sendo o “não lugar” onde a identidade se coloca em crise até a sua completa dissolução.

Abaixo postamos um documentário em Francês, com legendas em Italiano, sobre Tadeusz Kantor:



Quer saber mais sobre a exposição? Visite o site da Folha/ilustrada: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/07/1650249-em-centenario-do-diretor-exposicao-sobre-tadeusz-kantor-chega-ao-brasil.shtml 
ou ainda: http://www.gsnews.com.br/polonia-promove-ponte-artistica-brasil.aspx

Texto de Claudia Venturi
Referências: 
- Zanlonghi, Giovanna - Aulas de Dramaturgia, Università Cattolica del Sacro Cuore di Milano, em 2007. 
- Bernardi, Claudio e Susa, Carlo - Il Teatro della Morte di Kantor em Storia Essenziale del Teatro, V&P, Milano, 2005.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

DUDDU BARRETO LEITE

Revirando antigas histórias encontramos e decidimos compartilhar esta bela entrevista com Duddu Barreto Leite, atriz do Teatro Oficina, intelectual e artista reprimida -e apagada - pelo poder militar. Ela nos fala sobre como a repressão militar castrou o pensamento daquela época e as que se seguiram, sobre como a cultura, a ciência e a educação foram influênciadas por aquele período. Vamos falar um pouco sobre a nossa história e tentar compreender como chegamos a atual situação crítica na qual vivemos?
"Toda repressão forma uma geração"
Entrevista publicada na redebrasilatual.com.br, em 29/03/2012


Duddu Barreto Leite, ou melhor, Luiza Helena Barreto Leite Valdez,  de 80 anos, nasceu numa família de artistas. É filha da atriz e poetisa Maria Barreto Leite; sobrinha da atriz, professora, produtora e jornalista Luiza Barreto Leite; prima dos cineastas Luiz Alberto e Sergio Sanz; e irmã de Vera Barreto Leite, que foi modelo internacional e é atriz do Teatro Oficina. “Eu sou da segunda geração de um grupo de intelectuais e artistas”, comemora.





"O que acho pior é que essa gente, em nome de uma pátria amada, idolatrada, salve, salve, perseguiu três gerações da intelectualidade brasileira. Bastava pensar que você era um inimigo."

Duddu Barreto Leite: "Se abandonei o teatro, foi por perseguição política"

“Eu nasci na ditadura de Getúlio Vargas. Tive um processo democrático entre o Getúlio e o Getúlio. Passo por uma ascensão democrática, que foi tão extraordinária que, em menos de dez anos, conseguimos levar o Brasil a ter uma música exportada para o mundo inteiro, um cinema ganhando prêmios internacionais e um teatro de Cacilda Becker, que consegue ser aplaudida em pé em Paris”, destaca. Qualificando o povo brasileiro de fênix, por renascer das cinzas, ela acrescenta que, nesse novo momento de democracia, em menos de 15 anos votou-se num operário para ser presidente do Brasil. 
"...Mesmo assim, não tendo nada a peça que pudesse ser considerado subversivo, só pelo fato de ter o nome do Cesar Vieira e de eu estar no elenco, ela foi perseguida. Então bastava você existir como um ser pensante”"
Porém, após se destacar como produtora, diretora e atriz de teatro, cinema e televisão, Duddu se viu obrigada a abandonar a carreira em função de perseguição política. 
Garantindo que lutou e trabalhou muito a vida toda, Duddu Barreto Leite trabalhou num manicômio judiciário, atuando com teatro aplicado à recuperação de presos em Piraquara, no Paraná. É autora de um livro sobre teatro aplicado à educação e planeja escrever outro, “A Outra Fase da História”, demonstrando como o golpe de 1964 não foi arquitetado pelo exército, mas por integristas que se infiltraram no exército, com apoio do governo norte-americano.
Leia a seguir a entrevista completa com Duddu Barreto Leite.
Quais são os reflexos do regime militar no Brasil atual? E nós conseguimos superar todos os fantasmas daquele período?
Toda repressão forma uma geração. As professoras que estão atuando nos últimos 30 anos foram filhas da ditadura. Elas foram formadas por professores que serviram à ditadura. Então, evidentemente, essa é uma consequência muito grande. Todos os professores liberais da época foram perseguidos, mortos ou colocados fora do país. Nós estamos falando de um processo que acabou há menos de 30 anos. Então, mesmo as professoras que sejam liberais na sua sala de ensino têm dificuldades de usar a sua ação liberal. 
Eu tenho uma grande amiga que se formou bem depois disso. Só que ela está o tempo todo convivendo com diretores e inspetores de alunos que serviram à ditadura. Então é lógico que isso não acaba num passe de mágica. Agora nós só conseguimos resistir, porque tínhamos vivido o processo democrático anteriormente. Então é um fato histórico muito lento. Tanto nós fomos libertados, que temos hoje como presidente do país uma GTA (Grupo Tático de Ação), que atuou ativamente no processo de resistência. Apesar disso, os militares têm a ousadia de fazer uma festa em pleno 2012, comemorando a dita revolução. Não foi uma revolução, mas uma usurpação do poder e uma quebra da Constituição nacional. Tudo isso tem que ser muito bem claro e bem dito.
"A área da arte foi perseguida e exilada. Então eles destruíram o potencial da inteligência nacional.[...] Então acabaram com três gerações – a existente, a em formação e a embrionária."
Quais são as piores e as melhores lembranças desse período?
Não vou falar de tortura, porque é óbvio. Não vou falar de prisão, porque também é óbvio. Eu vou falar da castração da inteligência nacional. Isso foi o pior. Em qualquer processo ditatorial, eles perseguem, matam e torturam, só que esses acabaram com todo o processo de inteligência nacional. A área científica foi quase toda expulsa do Brasil. A área intelectual foi perseguida, presa, torturada e morta. A área da arte foi perseguida e exilada. Então eles destruíram o potencial da inteligência nacional. E também perseguiram os estudantes que estavam resistindo e não estavam a favor daquela coisa horrorosa que estavam implantando nesse país. Eles eram o potencial da inteligência nacional. Então acabaram com três gerações – a existente, a em formação e a embrionária.
Vou falar da minha área. Eu fazia teatro, televisão e cinema. Era produtora, diretora e atriz. Se eu abandonei o teatro, foi por perseguição por política. Todas as peças que eu queria encenar eram cortadas pela censura. O Cesar Vieira transformou um personagem masculino em feminino da peça “O Elevador” para que eu fizesse. Mesmo assim, não tendo nada a peça que pudesse ser considerado subversivo, só pelo fato de ter o nome do Cesar Vieira e de eu estar no elenco, ela foi perseguida. Então bastava você existir como um ser pensante. Para mim, ter sido presa e nunca ter sido colocada na Tiradentes, mas ter ficado sobre interrogatório durante 4 meses, era individual. Eu quis resistir. Eles vinham me atacar e eu sabia disso. O que acho pior é que essa gente, em nome de uma pátria amada, idolatrada, salve, salve, perseguiu três gerações da intelectualidade brasileira. Bastava pensar que você era um inimigo.
Você acha que o teatro foi mais perseguido do que as outras artes e projetos inovadores foram abortados em função da ditadura?
Foram. Mas não só no teatro. No cinema, no circo, em todas as expressões artísticas. Pintores foram perseguidos. Arquitetos foram perseguidos. Os cientistas, então, foram dizimados. Eu tenho uma amiga, que era professora de História, chegaram à sala dela e rasgaram os livros. Igual a Inquisição. E quando foi contra, ela foi presa. Não era uma pessoa com visão socialista. Não era nem de movimento de resistência. Só era uma boa professora de História e não admitia que fossem rasgados os livros com a História. Então a perseguição foi muito maior do que aparece na literatura brasileira, porque ela mostra apenas o corpo de resistência. Aqueles que foram presos, torturados e mortos. Estou falando das pessoas que não pertenciam ao movimento de resistência e que foram castrados na sua própria essência. Como se formou um estudante que não tinha acesso à informação e não tinha professores libertários? Que estudante é esse? Quem fez isso com eles?
Você acredita que havia uma autocensura muito forte?
Claro. Como é que você forma sua opinião? Através de informação. Se você não é informado que eu existo, não vai formar nenhuma opinião a meu respeito. Então vai tomar posições na sua vida de acordo com as informações que você recebe. Coloca-se uma censura em todos os meios de comunicação – na escola, na rádio, na televisão, no cinema, no jornal, na revista e nas igrejas. Então você castra uma geração inteira por 30 anos de informação e quer que o povo que nasça dessa catástrofe tenha opiniões formadas libertárias? 
"Então a perseguição foi muito maior do que aparece na literatura brasileira"
É um bando de fascistóides que formaram uma geração fascistóide. E agora estão reclamando do corpo político que está aí? Está aí porque eles formaram durante anos, castrando os que pensavam e elegendo os que se vendiam. E agora vêm me falar em corrupção? Como é que nós sobrevivemos? Como é que os Lulas e as Dilmas ainda sobreviveram? Sobreviveu, porque estava no movimento de resistência. Estava tomando pau no meio da rua e saindo do país. Foi assim que a gente resistiu. Então você há de convir que o mal é muito maior do que aquilo que a literatura brasileira diz. E essa geração reacionária que hoje representa o Brasil foi formada por eles.
Tem outro detalhe muito importante que é o seguinte: não foi o Exército nacional que fez a "revolução" de 64. Quem a fez foram os integralistas, que tomaram a força de comando no Exército nacional, porque os maiores mártires de 64 foram todos militares – Carlos Lamarca e Carlos Marighella. E muitos militares tiveram coragem de ir contra os integralistas vendidos aos Estados Unidos, pois essa revolução foi claramente armada e orquestrada pelo governo norte-americano, que declarou – há vídeo gravado mostrando isso – uma ação contra Cuba na América Latina. Então, nessa hora, tem que se falar que o exército não fez a revolução de 64. Aliás, não se pode chamar aquilo de revolução, mas, sim, de uma tomada de poder.
Morte e Vida Severina. Autor: João Cabral de Melo Neto. Direção: Clemente Portella. Produção: Teatro Experimental Cacilda Becker, 1960. Na foto: Walmor Chagas (Severino), Kleber Macedo, Assunta Perez, Dudu Barreto Leite, Solano Ribeiro, Benjamin Cattan, R

Foto Fredi Kleemann – Multimeios/Divisão de Pesquisa/Idart [Katz; Hamburger]

sexta-feira, 17 de julho de 2015

O PODER DOS TEATROS PEQUENOS

Hoje transcrevemos um artigo de nosso colega Afonso Nilson de Florianópolis que fala sobre a importância dos teatros pequenos para as comunidades locais e também sobre a megalomania de alguns governantes quando, com fins eleitoreiros, anunciam e inauguram enormes espaços que quando recebem eventos artísticos muitas vezes são por um preço inacessível para grande parte da população.

Vale a reflexão! 




Afonso Nilson é Gestor de cultura em Santa Catarina, crítico e dramaturgo. Escreve ocasionalmente para os jornais Notícias do Dia e Diário Catarinense. Participa regularmente de curadorias para mostras e festivais nacionais de artes cênicas. Publicou em 2014 o livro Pequenos monólogos para mulheres(Chiado Editora/Portugal), coletânea de textos teatrais curtos. Doutorando em teatro pela Udesc com pesquisa sobre crítica teatral brasileira.

Esse artigo foi publicado em 02/06/2015 no teatrojornal.com.br



Pronto para a leitura?

O Poder dos Teatros Pequenos - por Afonso Nilson


De vez em quando, de modo menos comum do que o necessário, algum governador ou prefeito inaugura um grande teatro. Arenas multiuso, auditórios e espaços diversos com capacidade para mil, duas mil pessoas ou mais. A louvável iniciativa de reverter o dinheiro público em espaços culturais, com possibilidade de receber atrações artísticas capazes não apenas de entreter, mas de tornar mais humanos, e às vezes até mais educados os eleitores, geralmente não alcança seus objetivos. E isso por alguns motivos muito simples, sendo o primeiro o fato nada incomum de que geralmente o único evento “artístico” financiado no espaço é a própria inauguração. Inaugurações pomposas, repletas de placas com nomes de políticos e administradores responsáveis pela obra não são raras, e são justas até. O que é raro são esses teatros manterem uma programação considerável e constante aberta ao público. Em resumo, de que adianta um espaço teatral megalomaníaco com uma programação anã? De que adianta investir dezenas de milhões em obras colossais quando a política pública para cultura raramente contempla programações sistemáticas, e teatros capazes de receber espetáculos diariamente acabam funcionando menos de uma vez por semana ou mês?

Parece que a prática de inventar elefantes brancos para autopromoção em inaugurações ainda permanece como uma boa plataforma na visão de muitos administradores públicos. Os recursos para cultura existem, e apesar de não serem fartos, conseguiriam, se bem aplicados, manter uma programação digna do nome nesses espaços. Multiplicam-se ao extremo exemplos como o da cidade de Florianópolis, que sustenta um evento “cultural” tão questionável como a Fenaostra ao invés de manter em funcionamento um edital para o fomento dos artistas locais. Limitar o investimento em cultura a festas de não sei qual hortaliça ou produto, passando o restante do ano sem promover uma única apresentação artística decente parece ser a regra geral das secretarias de Cultura, com honrosas e poucas exceções. Também são constantes as administrações públicas que gastam centenas de milhares de reais em um único show nacional (geralmente de duplas sertanejas) para comemorar o aniversário do município ou o natal, e passam o resto do ano dizendo que não possuem verba para cultura. Enquanto isso, teatros monumentais fechados ou caros demais para serem utilizados pela produção local, e a quase inexistência de espaços alternativos, forçam profissionais de artes cênicas, música e literatura a buscar trabalho fora de suas cidades e do estado, ou então a mudarem de profissão.


Apresentação de leitura dramática do testo SHAKESPIRADAS de Rogério Christofoletti, em nossa sede no Campeche, em novembro de 2014



Outra questão que se coloca é qual a capacidade desses monumentos de mil, dois mil lugares em atender a população. Receber públicos de mil pessoas (que geralmente são sempre as mesmas) uma vez por semana atende às necessidades de populações compostas de outras milhares de pessoas que jamais pisaram num teatro? Reservar a cultura para eventos pontuais, limitados a públicos específicos, não democratiza, nem de longe, o acesso. Pelo contrário, demoniza a cultura e a situa como fora de alcance, elitizada e inacessível a uma grande parcela da população, principalmente entre as classes em que um ingresso de R$ 50,00 é uma exorbitância.
Pergunto: o que é mais eficiente para o desenvolvimento cultural do estado, teatros de mil lugares, geralmente localizados no centro e fechados a maior parte do tempo, ou vários teatros menores, de até duzentos lugares, localizados na periferia das cidades e que funcionem como pequenos centros culturais? A partir daí surge uma outra questão: quais são os teatros com maior taxa de ocupação do estado, os elefantes brancos ou os de menor porte, capazes de receber a produção local? Acredito que a maior parte dos gestores públicos de cultura do estado não saberia responder, nem apenas por falta de dados, mas por absoluta falta do hábito em ir ao teatro.
"Frequentar peças de teatro, concertos musicais, contações de histórias deveria ser um hábito ao invés de algo esporádico e perdido em meio a eventos temáticos."
Exemplos como o Circo da Dona Bilica, um teatro particular localizado no sul da Ilha de Santa Catarina, com 250 lugares e programação contínua, repleta de artistas locais e a preços populares contrastam com espaços como Teatro do Centro Multiuso de São José, que, com mais de 700 lugares, raramente recebe atrações artísticas, necessita de reformas urgentes e, sem equipamentos ou técnicos, se limita a reuniões de políticos, a palestras e a feiras diversas.
O Teatro Embaixo da Ponte, na cidade de Rio do Sul, é outro exemplo de boa gestão e acesso. O espaço de 150 lugares, adaptado e equipado pelo poder público para receber apresentações, é referência estadual em difusão e valorização da cultura, sendo usado continuamente para receber os mais diversos grupos locais e nacionais, que se apresentam gratuitamente ou a preços reduzidos à população da cidade e arredores.
Teatros grandes são sim necessários, o grande problema é a sub-utilização desses espaços. Não adianta ter um teatro gigante sem equipamentos e sem equipes técnicas especializadas, como em geral acontece. Também não adiantam espaços onde os artistas locais não tenham acesso, sem clareza nos critérios de cessão de pauta ou que mesmo com pautas disponíveis permaneçam fechados a maior parte da semana. Outro ponto é a escassez de teatros. Santa Catarina possui mais de cento e cinquenta grupos de teatro, uma infinidade de músicos e contadores de histórias. Seria possível que todas as cidades recebessem atrações culturais regularmente? Sim, desde que existissem programas de circulação abrangentes e espaços capazes de receber esses artistas. Infelizmente, esses programas não existem na esfera pública, e quanto aos espaços, bem, temos alguns palcos de mil lugares que abrem uma ou duas vezes por semana para receber espetáculos comerciais, no pior sentido da palavra.
"É urgente pensar que o acesso à cultura só poderá se tornar uma realidade para além das propostas de campanha se se optar por espaços acessíveis e bem geridos em todas as cidades."
É imprescindível pensar que o acesso à cultura ultrapassa os limites do entretenimento de massa, dos grandes shows das festas gastronômicas, e se configura pela constância e multiplicidade de eventos culturais e artísticos disponíveis a todas as classes. Frequentar peças de teatro, concertos musicais, contações de histórias deveria ser um hábito ao invés de algo esporádico e perdido em meio a eventos temáticos. E, sim, as pessoas deveriam conhecer e avaliar os grupos e artistas da própria cidade, e esses grupos deveriam poder conseguir se apresentar em espaços adequados, que mesmo pequenos, de cem ou duzentos lugares, pudessem comportar uma programação regular. É urgente pensar que o acesso à cultura só poderá se tornar uma realidade para além das propostas de campanha se se optar por espaços acessíveis e bem geridos em todas as cidades. Pensar em teatros gigantes e pouco numerosos para programações pequenas e irregulares é dar mais valor às inaugurações grandiloquentes do que ao que de fato seria capaz de transformar culturalmente uma cidade, ou seja, que cada um pudesse usufruir de maneira contínua, sistemática e irrestrita do direito ao acesso à produção cultural e artística em seu próprio município, estado e país.
Sede do Círculo Artístico Teodora, localizada na Servidão do Cravo Branco nº 236, no Campeche, é um micro espaço multi uso, intimista, que possibilita tanto a apresentação de espetáculos teatrais "de bolso" quanto apresentações de músicos, exposições, oficinas de artes e outras atividades culturais. A quantidade de público varia de acordo com a proposta, podendo chegar até cerca de cem pessoas.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Direito autoral e as grandes corporações, o vale-cultura, a Lei Rouanet

Hoje o Círculo Artístico Teodora posta uma entrevista com o Ministro da Cultura Juca Ferreira, veiculado no Portal Vermelho em 21/06/2015, onde ele fala sobre a atual conjuntura cultural do país e a influência que ela vem sofrendo das bancadas "da bala, da bola, da bíblia e do boi".
É o momento Conjuntura Política no Círculo!

A Lei Rouanet é o ovo da serpente neoliberal no Brasil.

E como seria a nova cara da Cultura no Brasil? 

Fonte: Brasil 247



Leia a entrevista na íntegra:


247 – Gilberto Gil e Caetano Veloso se declararam na semana passada assustados com o momento político e o avanço do conservadorismo. Como o sr. vê a onda conservadora e a posição do mundo artístico?


Juca Ferreira – Esse avanço conservador está batendo no teto. Até porque a agenda programática desse movimento é assustadora não apenas para Caetano e Gil, como para o Brasil inteiro. Eles querem fazer com que o Brasil retroceda à Idade Média, época em que o Brasil não existia. 

247 – Existe uma agenda programática?

Juca Ferreira – A direita encontrou uma base social, que lhe dá uma coerência nessa agenda conservadora. Uma agenda que envolve flexibilização dos direitos dos trabalhadores, redução da maioridade penal, ataques aos direitos civis dos gays e da população LGBT, além de intolerância religiosa. Há um ataque a todo o ambiente de costumes bastante tolerantes no Brasil. Isso tudo assusta a sociedade e mostra que a movimentação não é apenas contra o PT e contra o governo. É contra as conquistas que foram afiançadas pelo governo Lula, pelo governo Dilma e pelo PT. Se não bastasse, há ainda os ataques ao Estado laico e às conquistas institucionais da democracia brasileira.

247 – O principal artífice dessa agenda é o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), presidente da Câmara dos Deputados?

Juca Ferreira – Hoje o deputado Cunha diz com todas as letras que a proposta do "distritão" tinha como objetivo inviabilizar o PT. Ou seja: manipula-se a cena política com metas muito pequenas.


247 –  Na semana passada, a Folha de S. Paulo publicou um editorial de página inteira contra o suposto obscurantismo representado por Cunha. A sociedade começa a acordar?

Juca Ferreira – Não só a Folha. Na área cultural, muitos começam a acordar. Tivemos a entrevista muito importante da Marieta Severa, o artigo do Aldir Blanc, o posicionamento do Chico Buarque sobre a maioridade penal, além de manifestações de vários artistas, como Gil e Caetano. A sociedade já começa a enxergar os objetivos mesquinhos e menores que estão por trás de toda essa mobilização conservadora.


247 – Esse projeto conservador pode prosperar?

Juca Ferreira – Esse projeto é inviável. Quebraria todas as tradições e todos os processos brasileiros. Além disso, esse programa não representa a grande maioria do povo brasileiro. Eles são estridentes, mas são minoritários, embora contem com o apoio de parte da mídia, que tem ajudado na construção dessa onda conservadora.

247 – O mau momento enfrentado pelo PT não ajuda a manter a classe artística na defensiva?

Juca Ferreira – Os escândalos de corrupção impactaram muito fortemente a sociedade. Isso criou uma certa perplexidade e uma inibição. Mas com essa explicitação de um programa conservador, a sociedade começa a perceber que é preciso resistir. Já estamos vivendo o momento de tomada de consciência, que é o início de uma reação. Veja o que aconteceu na tentativa de se inviabilizar a indicação do ministro Luiz Fachin para o Supremo Tribunal Federal. Os conservadores gritaram, mas a sociedade organizada reagiu. Além disso, começou a ficar claro, de tempos pra cá, que o PT não seria o único a ser afetado. Toda a estrutura político-institucional corria o risco de ser engolida por essa onda, inclusive o PSDB. Tem ainda um outro aspecto: esse ambiente não contribui para a retomada do crescimento no Brasil. 

247 – Os empresários também devem reagir?

Juca Ferreira – Se eu fosse empresário, também estaria preocupado com o avanço dessa onda conservadora. O ambiente de tolerância, de convivência democrática e de construção dos avanços pelas instituições, que se conquistou no Brasil nos últimos anos, hoje está ameaçado. Se essa onda der certo, o que eu não acredito que aconteça, o País poderá virar uma republiqueta de bananas, onde as instituições são manipuladas por interesses imediatos e menores.

247 – O ambiente de tolerância, que é uma das marcas do Brasil, corre risco?

Juca Ferreira – Sempre fomos um país paradoxal. Ao mesmo tempo em que há essa violência constante, o país sempre foi muito tolerante, muito aberto. É um país que tem possibilidade de, na democracia, construir uma sociedade de iguais. Mas tudo isso está sendo questionado por essa onda conservadora. Quando fui ministro pela primeira vez, recebi a visita de uma ministra da Bélgica, que veio nos convidar para uma homenagem feita ao Brasil. Ela disse algo incrível: que, na Europa, o máximo que conseguiram foi a tolerância com as diferenças. E afirmou que o Brasil compartilharia as diferenças com prazer. Isso me fez refletir no caráter autoritário da palavra tolerância. A tolerância é sempre uma atitude de superioridade do que está tolerando. Nos interagimos, convivemos e sentimos prazer com as diferenças. O Brasil que vai vencer é o da diversidade e que vinha experimentando com alegria a redemocratização. Esse Brasil reacionário, discriminatório e violento, que se faz representar na política institucional pelas bancadas da bala, da bola, da bíblia e do boi, será derrotado.


247 – Por falar em bancada da bíblia, como o sr. viu o episódio da transexual Viviany Belebony que se manifestou numa cruz, durante a mais recente Parada LGBT em São Paulo?

Juca Ferreira – A crucificação de Cristo é uma imagem que não pertence só aos cristãos. A apropriação por parte de um segmento que sofre discriminação, onde muitos são assassinados, é perfeitamente legítima.


247 – Cristo aprovaria?

Juca Ferreira – Aprovaria, sem dúvida.

247 – O sr. não teme ser chamado de 'cristófobo'?

Juca Ferreira – Não. Eu tenho o maior respeito pelas religiões e pela fé, que é algo grandioso. O que estamos assistindo é a manipulação da fé por interesses menores. A religião deve se manter distante da política, respeitando o caráter laico do estado e a diversidade da sociedade brasileira. Nós temos todas as religiões do mundo aqui no Brasil, convivendo de forma pacífica. Mas o germe da intolerância pode nos conduzir a uma experiência negativa, que não podemos subestimar.

247 – Há esse risco?

Juca Ferreira – O Líbano era uma sociedade aberta e que convivia pacificamente com todas as religiões. No entanto, o país foi inoculado de fora para dentro pelo germe da intolerância, com o objetivo de desestabilizar politicamente o país. Hoje, o Líbano é um inferno de guerras sectárias e de conflitos entre segmentos religiosos.

247 – Como o sr. viu o episódio da criança apedrejada após sair de um culto de umbanda?

Juca Ferreira – Inaceitável, assim como os traficantes evangélicos que estão expulsando os candomblés dos morros que dominam. Isso é muito simbólico da inversão total de valores. Cristo não apoiaria nem se sentiria representado por esses traficantes evangélicos.

247 – Qual é a sua posição sobre o ensino religioso nas escolas, tema que será apreciado pelo Supremo Tribunal Federal em breve?

Juca Ferreira – O ensino religioso é um problema. Temos que constituir uma sociedade que aceite a multiplicidade cultural. Ele valeria se fosse no sentido de informar o que são as religiões, como parte da história e da cultura. Aliás, isso já está no Plano Nacional da Educação. É preciso ter um tratamento generoso a todas as crenças, com respeito às religiões de origem afro. Se houver catequese dentro das escolas, o Brasil ficará menor.

247 – Mas também não se deve chegar ao extremo francês, onde ninguém pode usar um véu, concorda?

Juca Ferreira – O modelo brasileiro. Cada um se manifesta da maneira que quiser, sem imposição. E as pessoas aceitam. Por exemplo, na Bahia, quem usa branco nas sextas-feira não são apenas os seguidores do candomblé. 



247 – Qual a sua posição sobre o fato de dois grandes ídolos da música brasileira, que são Gil e Caetano, aceitarem cantar em Israel, a despeito do apartheid promovido contra os palestinos?

Juca Ferreira – Gil disse que está indo lá não tocar para os que discriminam os palestinos nem para o estado de Israel, mas sim para uma sociedade plural, em que parte significativa aceita o povo palestino e condena a política de Israel. Mas eu, se estivesse no lugar deles, não iria. Mas não julgo a posição dos dois.

247 – Na área cultural, o sr. tem demonstrado muita preocupação com o direito autoral, diante das novas tecnologias. O que o Minc pode fazer a respeito disso?

Juca Ferreira – Nós estamos preparando novas políticas para as artes. Vamos falar sobre a música, onde houve uma desorganização da indústria fonográfica, pelo desenvolvimento das novas tecnologias e facilidade de reprodução. A internet praticamente detonou a economia da música. Hoje, há uma aparência de que a música popular brasileira está em crise, mas essa imagem é falsa. Nunca se produziu tanto música de qualidade no Brasil – e no Brasil inteiro.

247 – Mas os artistas se mantêm?

Juca Ferreira – Esse é o problema. Alguns só. E que são poucos. Os artistas estão sendo lesados pelas grandes corporações que atuam na internet, como o Google e YouTube, que não pagam direito autoral no Brasil.

247 – E por que não pagam?

Juca Ferreira – Dizem que não existe legislação. Essas empresas ganham trilhões e não pagam nada. Nunca foi tão fácil medir a audiência, como na era da internet. Então é perfeitamente possível criar mecanismos para obrigá-las a remunerar os artistas. O problema é que essas empresas pairam nas nuvens, acima dos estados nacionais.

247 – O que pode ser feito?

Juca Ferreira – O Marco Civil da Internet foi o primeiro passo. Agora, o Ministério da Cultura vai liderar um esforço, debatido com artistas e produtores culturais, para formatar uma legislação que obrigue o pagamento. Tem que ser assim: tocou, pagou.

247 – O órgão arrecadador será o Ecad?

Juca Ferreira – Não, a lei não protege o Ecad e os artistas não querem o mesmo modelo na internet. Deve ser criada uma nova instituição arrecadadora. Hoje, os artistas não ganham porque essas empresas, como Google, Facebook e Youtube, se relacionam apenas com o tribunal da Califórnia. Isso precisa mudar. E às vezes acontecem coisas inacreditáveis, como quando o Facebook censurou uma foto de uma índia, de 1904, que havia sido retirada da página do Minc. Foi aí que eu soube que eles só se relacionam com a justiça americana.

247 – Como obrigar as empresas supranacionais a seguir uma lei nacional do direito autoral?

Juca Ferreira – Nós iremos aos foros internacionais, porque essa ação necessita de uma articulação global para que dê certo. Todos os países europeus já estão enfrentando o Google. Ou seja: há uma reação.

247 – Mas os europeus se movem mais na defesa do direito autoral dos jornais, e não dos artistas.

Juca Ferreira – Os jornais são mais fortes que os artistas, têm mais advogados, mas já há uma reação em defesa dos artistas. Não se pode permitir que essas empresas vampirizem os conteúdos e ganhem bilhões. Hoje, o maior desequilíbrio da balança comercial brasileira, em termos proporcionais, diz respeito ao direito autoral. Nós pagamos todos os direitos autorais em relação ao que vem de fora e não recebemos quase nada. Não há possibilidade de mover a indústria cultural brasileira se não formos capazes de regular a internet.

247 – A política do vale-cultura começa a pegar entre empresas e trabalhadores? 

Juca Ferreira – Está funcionando. No início, o vale-refeição teve dificuldade para ser implantado e hoje está disseminado. O vale-cultura está naquela fase inicial, pela qual o vale-refeição passou também. As centrais sindicais já estão propondo colocá-lo nos dissídios, muitos empresários já aceitam, mas nesse período de certa dificuldade econômica, é natural que haja um pouco de cautela. A primeira pesquisa feita sobre a nova classe média revelou que eles não se sentem classe média porque não têm o mesmo acesso à cultura.

247 – Como diriam os Titãs, "a gente não quer só comida, quer comida, diversão e arte"?

Juca Ferreira – Exatamente. Todos querem acesso a bens culturais de qualidade. As pessoas querem crescer e se tornar cidadãos mais complexos. Quem não quer um bônus que dê possibilidade de comprar CDs, livros, entrar no teatro, no cinema? Esse é um benefício facilmente compreensível.

247 – Por que o Ministério da Cultura pretende acabar com a Lei Rouanet?

Juca Ferreira – A Lei Rouanet é o ovo da serpente neoliberal no Brasil. O José Sarney, quando foi presidente, criou a Lei Sarney, que era baseada na renúncia fiscal, mas não permitia 100% de dedução. Teve o mérito de iniciar um processo de ampliação dos recursos para a cultura. Com ele, o empresário tinha que pagar pelo menos 20% para associar sua marca. O Fernando Collor veio e encomendou ao eminente diplomata Sergio Paulo Rouanet uma nova lei. Com ele, surgiu essa renúncia de 100%. Ou seja, a lei que pretendia criar um mecenato garantiu isenção total ao empresário. Ele não coloca nada e fortalece a sua marca. Além disso, há um outro subsídio, que é o volume gasto pelo Ministério para acompanhar esses processos da Lei Rouanet.

247 – Qual é o impacto disso?

Juca Ferreira – A gente gasta cerca de R$ 300 milhões do ano na análise dos pedidos e no acompanhamento das contas dos projetos já aprovados. O governo não só renuncia fiscalmente, como gasta. O que acontece é o seguinte: o Minc aprova, e os que conseguem as cartas de crédito saem para captar. Mas só cerca de 20% conseguem captar. E quem são esses? Os que podem dar retorno de imagem para as empresas. E como a lei é muito ampla, você acaba patrocinando peça da Broadway, ou seja, os que menos precisam. Um dia participei de um evento com diretores de bancos franceses no Brasil. Sabe o que me disseram? Que país generoso esse de vocês, que patrocina todos os nossos eventos.

247 – Mas por que é o ovo da serpente do neoliberalismo?

Juca Ferreira – Você pega um dinheiro público e permite que os departamentos de marketing das empresas ditem a política cultural. Eles investem no que pode dar retorno de imagem. Artista que pode ter repercussão na pobreza não interessa. Artista de vanguarda, que está inovando e saindo do gosto majoritário, não interessa. Artistas de estados onde o poder aquisitivo é menor também não interessa. Há uma seleção natural, implícita no modelo, que se confirma nas estatísticas.


247 – O que mostram os números?


Juca Ferreira – Dados alarmantes. Cerca de 90% do dinheiro fica no Sudeste. Destes 90%, 10% em Minas e os outros 80% no Rio e em São Paulo. Desses 80%, 60% ficam nas capitais. E nas capitais são sempre os mesmos que captam. 


247 – O sr. vai comprar esta briga?


Juca Ferreira – A briga já está comprada. Uma vez fui ao Senado e um senador do PSDB me questionou. Perguntei de que estado ele era e depois mostrei que sua região recebia '0,00alguma coisa' da Lei Rouanet.


247 – O que será colocado no lugar?


Juca Ferreira – O que existe no mundo inteiro. Um fundo cultural, que recebe este dinheiro, e o aplica seguindo critérios públicos. Ou seja: o Ministério vai aprovar os projetos e também os patrocínios. É preciso lembrar que os recursos da Lei Rouanet representam 80% dos gastos em cultura. Estamos falando de um dinheiro público, aplicado com critérios privados. E isso, obviamente, tem que mudar.


247 – Qual é o volume anual?


Juca Ferreira – Estamos falando de R$ 1,3 bilhão em renúncia fiscal.


247 – Quem é que sustenta politicamente a Lei Rouanet?


Juca Ferreira – Os poucos que têm acesso, assim como os institutos de grandes empresas. Vale lembrar, também, que, graças à Rouanet, as empresas também reduzem seus investimentos próprios em marketing. Porque já fazem marketing com dinheiro público, associando-se aos artistas. Lá atrás, quando falamos pela primeira vez em mudar, o Gil falou uma coisa importante. Disse que, como artista, se sentia privilegiado, porque nunca teve qualquer projeto que enfrentasse dificuldade para captar. Mas afirmou que, como homem público, não poderia defender a continuidade da lei.


247 – Qual é a sua proposta?


Juca Ferreira – A criação de um fundo nacional, com fundos setoriais, e que tenha esses recursos garantidos no orçamento. A área econômica não gosta, porque entra no cálculo do superávit. Mas estamos falando de recursos ínfimos, e que geram negócios. O que eles fazem é uma hipocrisa contábil.


247 – E as empresas? Como participam do financiamento cultural?


Juca Ferreira – Se quiserem associar suas marcas, terão que investir, com recursos próprios, 20% do total do projeto. Acaba a renúncia fiscal. Vamos supor que isso crie uma má vontade e os empresários não invistam. Nesse caso, não perderão nada. Como hoje não investem nada, vão continuar não investindo nada. Zero menos zero é igual a zero. Se quiser ter exposição de marca, paga. É uma lógica capitalista, clara e transparente.


247 – Essa proposta vai para a rua quando?


Juca Ferreira – Já passou pela Câmara, colocaram ali umas jabuticabas, mas a minha expectativa é que o Senado as retire. Daqui pro fim do ano, a gente consegue resolver essa questão.






quinta-feira, 2 de julho de 2015

A PRIMEIRA CEIA

Hoje postamos a última parte do texto "A Última Ceia", de Claudio Bernardi, professor da Universitá Cattolica di Milano, com tradução de Claudia Venturi. Um texto que mostra o alimento como ideia de união e fonte de guerra (como algumas filosofias, religiões etc), que explora as vaidades humanas e artísticas e o preço da ciência.



Hoje publicamos o quarto e quinto atos, mais o Exôdo.
E semana que vem teremos mais curiosidades e informações teatrais!
Acompanhem o nosso blog e boa leitura!

A Primeira Ceia
(Continuação do texto de Claudio Bernardi, com tradução de Claudia Venturi)


QUARTO PR-ATTO

SIMONAL – Meu Deus, que desastre!
EVA – Chefe, vamos arrumar tudo…
SIMONAL – Mas o que você quer arrumar?
LEO – Não, nós precisamos arrumar isso! Eu tenho que fazer a minha obra prima: a Primeira Ceia!
SIMONAL – Eu tive uma ideia idiota com o Cenáculo, me desculpem.
EVA – Mas não! A ideia é ótima. Ao contrário. Exatamente porque ficou claro que a ideia não funciona entre nós e também não funciona a representação é que não precisamos imaginá-la, mas realizá-la. Assim é o mundo. Este é o problema. E tem de haver uma solução.
LEO – O punho de ferro! Agora “eu” vou arrumar tudo isto!
SIMONAL – Mas são contratados?
LEO – Contratados?
SIMONAL – Você está pagando?
LEO – Pagando? O quê?
SIMONAL – A eles, aos estilos alimentares.
LEO – Claro que não. Ao contrário, eles deveriam me agradecer. Com a minha obra prima se tornarão famosos.
ADÃO – Ahãm! Tô sabendo!
EVA – Entendi porque eles só fazem o que querem.
MARTA – Estão errados vocês dois.
LEO – No quê? Na imagem? No quadro? Na foto?
MARTA – Não, não, vocês erraram ao tocar no problema dos problemas.
SIMONAL – E qual é?
MARTA – A alimentação. A alimentação é identitade. Cultural, religiosa, social, afettiva…
LEO – Não, a alimentação é vida. A alimentação é arte, ciência, desejo, eros! A alimentação é vida!
MARTA – Sim, mas o íntimo da vida. Pessoal e coletiva. A alimentação une, mas também divide. Coloca uns contra os outros.
ADÃO – Desde pequenos. Imagina que a minha mãe queria que eu comesse verduras e eu as cuspia todas.
EVA – A tua mãe? (lhe dá um tabefe) A tua mãe!
ADÃO – (choramingando) Mas a sopa era horrível…
LEO – Precisamos comer apenas aquilo que gostamos.
SIMONAL – Mesmo se faz mal?
LEO – Para um “natureba” tudo faz mal…
SIMONAL – Mas eu me pergunto: existe um alimento bom, saudável e nutritivo?
DOUTOR – Stop! Vocês estão procurando o alimento universal?
ADÃO – Não existe. Quando o alimento é bom, faz mal. Quando faz bem, é ruim. Quando é nutritivo não tem gosto de nada. Olha só: os veganos são amarelos como maracujás.
SIMONAL – Mas talvez eles tenham razão. Por que matamos os animais?
LEO – Por que assim também fazem os outros animais. É a cadeia alimentar. Todos os seres vivos se nutrem uns dos outros.
ADÃO – O peixe grande come o peixe pequeno
EVA – E o homem…
ADÃO – que é o animal mais irracional entre todos
LEO – come tudo de tudo. Ele está no topo da cadeia alimentar.
SIMONAL – Mas não se deixa comer por outros homens…
LEO – Hoje, mas há um tempo... Os canibais…
ADÃO – comiam a vovó ao forno com bata… (Eva lhe dá um tabefe). Mas é verdade!
SIMONAL – Mas agora não somos mais canibais…
MARTA – É não, somos ainda piores!
ADÃO – A vovó... não!
EVA – Em que sentido?
MARTA – Não  no sentido carnal, mas no espiritual…
EVA – O que é até pior.
MARTA – Sim, passamos o tempo a nos dilacerarmos uns aos outros.
SIMONAL – Como aconteceu aqui, agora há pouco…
DOUTOR – Senhoras, senhores, poderiam me escutar? Eu, eu tenho a solução real. A ciência sempre tem a solução, porque é o Caminho…
TODOS -…a verdade, a vida.
LEO – Estamos ouvindo, e qual seria a solução?
DOUTOR – A pílula.
ADÃO – Anticoncepcional (leva outro tabefe de Eva)
DOUTOR – Não. A pílula alimentar. Ei-la (pega uma cartela) Em cada uma destas pílulas tem tudo o que a energia humana necessita.
ADÃO – Ah não, se tirar o gosto, as lasanhas da vovó, o churrasco, a canjica, o aroma do café, a caipirinha…
ESFOMEADO – (do fundo) Estou com fomeeee!
DOUTOR – Mas não. A pílula alimentar é revolucionária. Não sacia somente mas, graças aos seus compostos químicos secretos desencadeia nas papilas gustativas todos os aromas, os prazeres, os sentidos e as sensações que a pessoa deseja naquele momento.
EVA – Ah! Assim, se eu tenho vontade de comer uma codorna…
ADÃO – A pílula se transforma!
DOUTOR – Sim, é mais ou menos isso, a pílula libera apenas os sabores desejados pela mente.
LEO – Estraordinário!
DOUTOR – Sim, a pílula alimentar é o verdadeiro alimento saudável, bom, nutritivo, universal. Com a pílula alimentar haverá a completa paz dos sentidos, do corpo, da família, dos povos. Dará a paz ao mundo!
EVA – Mas dessa forma o Senhor, doutor, manda às favas todos os que trabalham com a alimentação, camponeses, chefs, doceiros, mas também o Senhor  doutor que trabalha com a saúde, porque se é verdade que estamos mal, 90% das vezes é culpa daquilo que comemos e da forma como comemos…
DOUTOR – Retrogrados! Imaginem o grande progresso que o mundo pode fazer com a pílula alimentar. Não haverá mais fome no mundo. Não existirão mais disturbios alimentares. As doenças…
ADÃO – A dor de barriga e o cagalhão (tabefe de Eva)
DOUTOR – Não nos cansaremos mais e seremos todos felizes e contentes no êxtase dos sentidos.
MARTA – Certo, em casa não precisaremos mais de cozinha. Um cômodo a mais. Nada de lavar louças. Preparar a refeição, arrumar a mesa, fazer compras… para nós, mulheres, seria finalmente a libertação!
ADÃO – Mas uma pessoa se prende pelo estômago ou por outra coisa.... Mas se aquela, a beleza, é passageira, como pensam em se manter, eh?
EVA – Com esta! (tabefe em Adão)
MARTA – Mas os dentes, o estômago, o esôfago, isto é, praticamente o corpo inteiro, serviria para quê?
LEO – Lindo, maravilhoso, doutor. O Senhor encontrou aquilo que pode agradar a todos! Vamos senhores, todos ao redor da mesa. Agora sim, temos a Primeira Ceia. O Senhor doutor coloque-se ao centro e com as mãos unidas eleve a pílula alimentar, e todos os estilos alimentares a olhem adorando. (organiza de forma artistica a cena, ajustando as poses dos diversos estilos alimentar)
MARTA – Que gênio! A este doutor darão certamente o Nobel da Medicina…
EVA – Mas até mesmo o da Paz…
SIMONAL – Com licensa, doutor, mas como se chama esta pílula revolucionária?
DOUTOR – Manà!
SIMONAL – Como mana? Irmã?
DOUTOR – Não. Manà. É ingles científico.  Uma palavra composta da Man, que quer dizer Homem, e A que vem de Alimentation.  Alimentação humana.
LEO – Extraordinário!
ESFOMEADO – Estou com fome!
ADÃO – E agora não vai mais sentir fome! Doutor, posso inserir na boca uma caixa toda de Manà?
LEO – Depois, depois. Depois de minha obra prima.
SIMONAL – Estou emocionado. Esta é realmente a Primeira Ceia. O alvorecer de um mundo novo de paz, alegria, liberdade.
LEO – Não mais violência, mas amor! Doutor, erga-a bem no alto a Manà. Isso! Parados todos! Sorriam…
GEA – Ei! E eu aonde eu fico?
LEO – Oh minha cara, claro, desculpe, pode se colocar no lugar do doutor, não, coloque-se ali, no último lugar, a direita….
GEA – O quê? Eu, no último lugar?
LEO – Sim, sim, sim! Vai lá! Bio mio, meu Deus! Gea, você me dá nos nervos.
ADÃO – Os nervosos…
LEO – Santa, santissima que sa..., mas porque você sempre me enche o...
ADÃO – ovos no cesto…
LEO – O que está acontecendo, Gea? Você foi mal na prova de anatomia? A tua mãe não te deu carinho? O tuo pai te batia? O teu selênio está mais alto do que o normal? Mas por que você precisa sempre me bater os ovos?
ADÃO – em neve.
EVA – (tabefe) Glacé.
GEA – Não, querido, não estou absolutamente fora de mim. Como vovê pode ver estou calma. Calmíssima. É que eu sou a Terra. Foi você mesmo quem disse, ou não?, que eu sou a Terra?
LEO – Sim, fui eu quem falei, e agora?
GEA – E agora você é um imbecil!
LEO – Imbecil, eu? Leonardo D’Untempo, The new genius!
GEA – Sim, sim, um super imbecil. Por que se eu sou a Terra, a Mãe de todos e de tudo, me coloque no centro e não lá no fundo!
SIMONAL – Na verdade, ela tem razão…
LEO – Tudo bem, tudo bem, concordo.  Vamos fazer assim: você, fica no centro dos doze apóstolos alimentares e faz a elevação da Manà. Tudo bem? Doutor, por favor, larga a Manà para que Gea possa pegá-la e se posicione no último lugar.
DOUTOR – Eu no último lugar? Nunca e nunca. Eu sou a Ciência e nem mesmo a Terra existiria sem mim.
AVA – Mas doutor, o Senhor estará sempre no centro com a sua invenção, a Manà!
DOUTOR – Não, está ela, a amiguinha recomendada pelo diretor sabe se lá quantas vezes ele já a colocou...
LEO – Espero muitas, ela é a minha namorada!
AVA – Doutor, me desculpe, mas na ciência não conta a pessoa, conta o resultado.
EVA – E depois o Senhor não é assim tão bonito, seria uma Feia Ceia com a sua cara ao centro…
ADÃO – Se fosse um alvo…
LEO – Bio mio, bio mio, quantos problemas por nada.
EVA – Então, todos querem aparecer, estar no centro e não de lado…
GEA – Mas não é este o problema.
SIMONAL – E qual é?
GEA – Eu contesto!
LEO – De novo? Mas você foi mordida por uma formiga?
GEA – Eu contesto esta Manà, a pílula alimentar, o alimento universal. A comida igual para todos.
ADÃO – Um alimento comunista!
GEA – Não, capitalista! O alimento das multinacionais, do capitalismo global, aquele que dá lucros.
VEGANA – ao qual somos todos submetidos.
VEGETARIANA – Tira o trabalho dos camponeses.
FRUGÍVORA – É contra a biodiversidade.
ABRAÃO – O desenvolvimento sustentável.
DOUTOR – Mas o que vocês estão falando?
TODOS OS ESTILOS ALIMENTARES – (alternando-se nas falas seguintes, circundano aos poucos o Doutor que se retrai, tenta ir embora e, no final, foge seguido por todos) “Sim, doutor, você e a sua ciência, é um vendido!” “Judas! Judas!” “Por dinheiro é capaz de vender a própria mãe!” “E no entanto enganou a todos” “Ditador!” “Aproveitador” “Vocês, cientistas, são todos mentirosos vendidos!” “Salafrários!” “Abaixo a ciência”, “Liberdade!” “Não OGM”, “Abaixo a Manà!” “Peguem o Doutor!”
DOUTOR – Socooorrooooo! Piedade! Querem me matar! Não sou o seu bode expiatório! (foge seguido pelos doze enlouquecidos, inclusive Gea e depois Ava. Saem de cena)
AVA – Senhoreeesss, vooooltem…
LEO – Paareeem, tenho que fazer a minha Primeira Ceiaaaaaa….
SIMONAL – (a Eva, Marta e Adão) Ok, hoje realmente não é o dia…
EVA – Chefe, o que faremos com eles? (indica os comensais)
SIMONAL – Ah, meu Deus, já estava me esquecendo. Em breve, serviremos o segundo prato…



(programa do espetáculo na Itália)

QUINTO PR-ATTO

Apagam-se todas as luzes da sala para obter um ambiente o mais escuro possível. Entra em cena a mulher que se nutre só de luz (Lucia) com uma longa tunica branca e com uma luz acesa nas mãos. Por todo o ato Lucia acenderá lâmpadas e velas deslocadas sobre mesas e em diversos pontos do espaço e as entregará um por um a todos os estilos alimentares e aos outros atores que reaparecerão  pouco a pouco na sala.
LEO – Quem é essa?
AVA – A mulher que se nutre só de luz.
ADÃO – Não é possível! Não existe isso!
AVA – Sim, existe. Pode se informar.
EVA – E não come nada?
AVA – Isso mesmo, se nutre apenas da luz do sol.
ADÃO – Ela deve ser bem bronzeada.
EVA – E é saudável?
AVA – Como um peixe.
LEO – Mas o que ela veio fazer aqui?
AVA – Não tenho a menor ideia.
SIMONAL – Eu tenho.
LEO – Foi você que a chamou?
ADÃO – Terá sido enviada pela Bio.
 SIMONAL –Bio não, por Deus.
ADÃO E EVA – Não, Bio.
SIMONAL – Bio ou Deus não importa. Só sei que tem algo que não está certo no que eu fiz.
LEO – Mas do que você está falando Simonal? O que é que tem de errado com a nossa ideia de fazer a Primeira Ceia? (escuta-se o canto de um galo).
SIMONAL – Ouviram? Um galo. Mais uma vez eu o reneguei.
EVA – Mas quem?
SIMONAL – Eu disse e jurei que não o conhecia. Que nunca o vi, nem ouvi. Eu, o seu sucessor.
ADÃO – Mas de quem você está falando?
EVA – Dele…
ADÃO – Dele quem?
SIMONAL – Naquela noite, aquela ceia, o que exatamente aconteceu? (de varias partes os atores giram entre o público, recordando A Última Ceia. Todos com tochas nas mãos que acendem enquanto falam e apagam quando eles se calam)
MARTA – Então pegou o pão, o partiu e o deu aos seus discípulos dizendo: “Este é o meu corpo”.
ABRAÃO – Então pegou o cálice, encheu com um bom vinho, e disse: “Tomai e bebei, este é o meu sangue”.
SIMONAL – Vos dou para a salvação e a saúde de todos nós.
VEGETERIANA – Ele sabia que aquela seria a última ceia com os seus amigos.
FRUGÍVORA – Disse que queria celebrar a Pásqua com eles.
VEGANA – Mas por que não queria o cordeiro assado como era de costume?
ISMAEL – Não queria carne. Escolheu os vegetais. A farinha do pão. A uva do vinho.
ESFOMEADO – O fruto do trabalho do homem.
DOUTOR – Ele queria mudar. Sabia que no início o alimento vinha do sacrifício de tantos animais.
ONÍVORO – E talvez soubesse que o primeiro banquete, a primeira ceia, era de carne de homens sacrificados.
CARNÍVORO – Dos quais os corpos assados vinham compartilhados.
CRUDÍVORO – É o canibalismo antigo narrado pelos mitos.
CELÍACA – O sacrifício humano.
GULOSA – Superado pelo povo eleito, quando Abraão retirou a mão e a faca do seu filho Isac.
GEA – E um anjo o indicou um carneiro em substituição.
MARTA – Mas até mesmo essa substituição ele quer superar.
VEGANA – Ele queria substituir a carne de qualquer animal.
CARNÍVORO – Mas sem violar a libertdade de cada um.
ONÍVORO – O princípio de que podemos comer tudo.
VEGETARIANA – Sim, mas mesmo que tudo seja lícito, nem tudo é bom
FRUGÍVORA – ou saudável.
SIMONAL – Mas ele, não buscava o alimento bom, saudável e nutritivo.
MARTA – Queria nos deixar algo de mais profundo.
GEA – Não só de pão vive o homem.
LEO – Há uma relação muito tênue entre o alimento e as pessoas.
EVA – Entre alimento e paz.
ADÃO – Entre alimento e opressão.
CRUDÍVORO – Entre alimento e vida.
CARNÍVORO – Pessoal e social.
ESFOMEADO – O que ele queria é que nenhum alimento fosse fruto de assaltos, violência, guerras, destruição. É um enorme sacrifício humano privar os povos devido a fome cruel de dinheiro e poder. E loucamente passar da distruição dos outros até a autodestruição.
GEA – Até a morte da terra, do mar, do céu.
ISMAEL – O problema ontem, hoje e amanhã é sempre o mesmo: como salvar o homem de si mesmo?
SIMONAL – Ele buscava um alimento que nutrisse, mas não matasse.
ABRAÃO – Um alimento que não corrompesse e não se corrompesse.
ADÃO – Que não nos fizesse mal.
SIMONAL – Então, um alimento eterno, espiritual.
EVA – Que pudesse unir os homens, as suas culturas, os seus estilos alimentares, como agora nós…
CRUDÍVORO – Sonhava?
ONÍVORO – Não, nunca será possível que todos os homens…
GULOSA – Mas até isso ele sabia.
MARTA – E não foi por acaso que naquela ceia estivesse presente exatamente quem o traiu por dinheiro.
SIMONAL – E eu em todas as Últimas ceias sou representado com uma faca nas mãos. Para lembrar que naquele local, quando vieram para capturá-lo, eu pensava, como todos, que só com a força e com a espada se pode defender e haver justiça. E estarmos juntos…
EVA – Mas não vamos nos esquecer dos seus outros amigos, os apóstolos.
ADÃO – Escaparam todos, os infames.
AVA – E o que nós faremos agora? Fugimos de tudo, por medo. Não queremos ver nada, pensar nada, fazer nada…
ADÃO – SOS! SOS! Salve-se quem puder!
CELÍACA – Não, não. Salvem as nossas almas.
GEA – Existe uma particularidade a ser observada naquela última ceia. Não tinham mulheres.
AVA – E até isto ele sabia.
ADÃO – O que ele sabia?
EVA – Que a cruel espécie humana é cruel porque se dividiu entre masculino e feminino. Ele o  patrão, ela a serva.
MARTA – Contra a criação. Deus não criou o homem, mas os criou macho e fêmea.
GULOSA – Para o encontro, a relação.
VEGETARIANA – Na cruz por causa disso concedeu ao jovem homem, João, à mãe.
FRUGÍVORA – E as mulheres foram as primeiras testemunhas da sua resurreição.
VEGANA – Queria o fim da faca, do sangue versado, da violência, do nosso choro, de cada execução.
CRUDÍVORO – O alimento mortal do mundo daquele tempo.
ONÍVORO – E de hoje, ainda.
CELÍACA – Fez também mais uma coisa para mudar o poder e salvar a carne.
SIMONAL – Ele, Deus, o rei lavou os pés dos seus como se fosse um servo. E disse: “Lavem os pés uns dos outros.” Isto é sirvam-se uns aos outros. E quem tem mais poder, sirva mais do que todos os outros.
DOUTOR – Os cientistas, os professores, para a saúde de muitos e não para o benefício de poucos que os pagam deveriam ser os primeiros a criar, inventar, estudar, ensinar…
ABRAÃO – Mas o terceiro pilar daquela noite foi o mandamento, a nova lei que diz: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. E deu tudo ele mesmo.
ESFOMEADO – Luz da luz…
MARTA – Pão do céu… como o sol…
EVA – Nos nutre o amor.
SIMONAL – Mas se foi assim, aquela não foi então a Última Ceia. Não. Foi a primeira. A primeira verdadeira Ceia.
ADÃO – A Ceia de Primavera!
(todos os estilos alimentares, pouco a puoco, aproximam-se da mesa do cenáculo e compoem o Cenáculo de pentecostes com Gea ao centro, mas tendo sobre a cabeça as mãos de Lucia que erguem a luz e todos os estilos alimentares têm uma vela consigo)
LEO – Perfeito! Perfeito! Todos parados! Esta, esta sim é a Primeira Ceia! (flash, música apropriada, e então se acendem as luzes)
ADÃO – Dulcis in fundo! (todos começam a servir os comensais)
Vem servidos os doces



(programa do espetáculo na Itália)

EXÔDO

SIMONAL – Caros amios, obrigado por terem vindo.
ADÃO – Por terem resistido.
SIMONAL – O meu experimento fracassou. Não farei nenhum restaurante nem cenáculo.
MARTA – Esperamos apenas que aquilo que demos aqui os tenha agradado.
SIMONAL – Se não os agradou, pedimos que nos perdoem. Eu sonhava com um pequeno evento ou, pelo menos, um forte momento no qual o nosso pequeno mundo se escancarasse. Sonhava com um fogo que tivesse nos aquecido. Uma luz que nos teria iluminado. Algo de belo para nos recordarmos.
MARTA – O espetáculo-ceia acabou.
EVA – Nos despedimos com o desejo de que, de alguma forma, esta pequena semente que plantamos no coração e na mente, cresça e dê frutos maiores do que imaginamos.
SIMONAL – Isso e não apenas. Daquela primeira ceia aconteceram tantas outras ceias, com desilusões, mortos, traições. Não estamos ainda em um mundo perfeito, mas muita coisa já mudou no homem.
MARTA – Ainda temos muito o que fazer, para que se aproximem todos do refeitório daquele magnífico mundo que é a criação, repleto de frutas e de tantas delícias
EVA – De irmãos e amigos
SIMONAL – Juntos e felizes para o sol do pão
ADÃO - e a jóia do vinho!
MARTA – Realizar todos os dias a verdadeira ceia agora é tarefa de vocês!
EVA – Mas também nossa, depois de hoje. Obrigada amigos.
SIMONAL – Tin Tin ao alimento verdadeiro, que quanto mais nos nutre mais o queremos.
MARTA – O alimento infinito da luz, o único alimento que dá vida e não morre.
EVA – O amor.


Fim