sábado, 27 de fevereiro de 2016

ANTROPOLOGIA DO CORPO EM CENA

LE BRETON, David. «Conclusion. Anthropologie du corps en scène» [Conclusão. Antropologia do corpo em cena], p. 189-204, in BARBA, Eugenio et alii. Le Training de l´acteur [O Treinamento do Ator]. Obra coordenada por Carol Müller. Paris/Arles: Conservatoire National Supérieur d´Art Dramatique (CNSAD)/Actes Sud, 2000. — Tradução de José Ronaldo FALEIRO.


Antropologia do corpo em cena


Sou sincero quando jogo.
ANDRÉ GIDE

Da comédia do mundo ao teatro


Numa entrevista concedida a Le Monde [O Mundo] (7-8 de abril de 1985), o ator Michel BouquetA explica que comer bem ou beber bem são situações difíceis de conseguir em cena. A embriaguez deixa ao ator uma margem de manobra mais saliente do que se tiver de se alimentar durante a representação. Houve grandes beberrões no teatro, mas poucos grandes comilões: «O fato de que um gesto se desencadeie com tal velocidade e não com tal outra, se um copo for bebido rápido demais, se não se refletiu sobre a maneira de o olhar antes, tudo se verá, tudo trará a prova de que não é totalmente crível. Pois já não se trata de uma intenção ou de um sentimento, mas da verdade de um gesto». De que verdade se trata? A resposta é relativa. A verdade de um gesto ou da expressão de uma emoção é característica de uma cultura e de uma dramaturgia, e não de uma natureza. Quer se trate, aqui, de comportamento adquirido, de frutos de uma educação ou de uma intenção, essa é justamente a própria condição da formação do ator e de sua atuação em cena.

Michel Bouquet

O homem é vinculado ao mundo por um tecido permanente de emoções e de sentimentos. É tocado pelos acontecimentos ininterruptamente. Para o senso comum, a afetividade parece primeiramente um jardim secreto em que se cristaliza uma interioridade da qual nasceria uma espontaneidade sem falha. Contudo, apesar de se oferecer com as cores da sinceridade e da particularidade individual, ela é, sempre, a emanação de determinado meio humano e de um universo social de valores. As emoções que passam através de nós, e a maneira como repercutem em nós, se alimentam de normas coletivas implícitas, em orientações de comportamento que cada um expressa conforme o seu estilo, conforme a sua apropriação pessoal da cultura e dos valores que o banham. A emoção não é, em nada, natural, biológica, ou hormonal. Ou antes: só existe uma biologia das paixões porque existe uma cultura das paixões. E estas não são substâncias transponíveis de um indivíduo ou de um grupo para outro. Não se trata de processos fisiológicos independentes do homem, mas de relações. Embora disponha do mesmo aparelho fonador, o conjunto dos homens do planeta não fala necessariamente a mesma língua. A emergência das emoções, a intensidade delas, a modalidade de utilização que possuem, o seu grau de incidência nos outros, respondem a estímulos coletivos suscetíveis de variar segundo os públicos e a personalidade das pessoas solicitadas. O desvio antropológico lembra o caráter socialmente construído dos estados afetivos (inclusive dos mais ardentes), e das manifestações destes[1].


Modulação social da emoção


A cultura afetiva não é, porém, uma capa de chumbo que pesa sobre o indivíduo: é um modo de usar, uma sugestão que responde a circunstâncias particulares, não se impõe como uma fatalidade mecânica. O indivíduo pode «brincar» com a expressão de seus estados afetivos, sentindo-se, por exemplo, excessivamente afastado daqueles que seriam socialmente adequados. Ele se aborrece na festa organizada em sua honra, ele se sente desligado dos amigos; não sente nenhuma dor com a morte de uma pessoa próxima, etc. O indivíduo sabe que não corresponde às expectativas. Se der importância a isso, então enganará por meio de uma bricolagemB pessoal. Mobilizará os signos esperados para não perturbar ou decepcionar o público. Às vezes existe vantagem em sugerir um sentimento, ainda que não seja sentido, por desejo de conformidade, por preservação da imagem de si, por estratégia pessoal, para ganhar os favores de alguém, para não se descobrir, para não perder a sua reputação, para não ferir o outro, etc. Prodigalizando os signos aparentes de uma emoção que não sente, o indivíduo constrói uma personagem para si mesmo. Um estado afetivo experimentado pode ser expresso, mas também dissimulado, nuançado, exacerbado, etc. Não sentido, pode ser fingido. A expressão do sentimento é, então, uma encenação que varia conforme os públicos e conforme o que está em jogo.

Com efeito, todo homem dispõe da faculdade de representar um papel brincando com os signos que anunciam aos outros uma significação cujo alcance ele controla cuidadosamente. O jogo em cena é pensável porque, antes de tudo, o teatro está na vida social. O paradoxo do ator é o paradoxo da simbólica corporal, é o prolongamento da latitude própria ao homem de testemunhar para os outros as únicas significações que ele quer dar a eles. Quando se baseia nas manifestações físicas adequadas, a sinceridade é acessível à penetração psicológica com dificuldade. É um efeito de encenação. O assassino reveste muitas vezes os adornos do homem de bem. A aparência é justamente a cena proposta pelo homem comum à leitura dos seus parceiros. A arte do ator explora essa jazida de signos, torna-os um jogo de escrita que apregoa o estado moral da sua personagem. O corpo se torna narrativa, carrega o sentido do desempenho compartilhado igualmente com a palavra. Segundo Bernstein, «há uma verdade que todos os autores dramáticos conhecem: os espectadores escutam primeiro com os olhos. Constatamos que um ator pode, por um lapso, dizer exatamente o contrário do texto, sem que o público saiba; este continua a ler o nosso pensamento nos movimentos e no rosto do intérprete».


O teatro como laboratório das paixões


         A cena do teatro é um laboratório cultural em que as paixões ordinárias desvendam a sua contingência social, em que se mostram na forma de uma partitura de signos físicos que o público reconhece imediatamente como tendo sentido. O ator dá ao público a impressão de viver pela primeira vez os acontecimentos aos quais é confrontado, ainda que a peça esteja em cartaz há semanas. Dissipa a sua pessoa na personagem, mesmo se os críticos não se cansam de comparar um com o outro, e de avaliar os diferentes desempenhos que eles conhecem em relação ao mesmo papel. O ator não se confunde, porém, com a sua personagem: ele a interpreta, quer dizer, concede generosamente ao público os signos que estabelecem a inteligibilidade do papel. Ele representa, quer dizer: introduz uma distância lúdica entre as paixões solicitadas pelo seu papel e pelas suas próprias, trabalha como artesão, no seu corpo, para repelir a sua afetividade de pessoa singular, para dar todas as oportunidades às emoções da sua personagem. Aos olhos do público, ele ensina uma crença em seu papel graças ao trabalho de elaboração que forneceu, auxiliado pelo encenador. Mas a transmutação só é possível por as paixões não se constituírem como natureza, mas serem características de uma construção social e cultural, e se expressarem num jogo de signos que o homem sempre tem a possibilidade de desenvolver, até se não os sentir.


         O ator brinca com um teclado de emoções. Ele se vê chorando, ou afundando no desespero, ou rindo às gargalhadas. Ainda que apresente a tortura do ciúme para ler, Orson Welles não é Otelo; aliás, todas as noites ele deve satisfazer as exigências do seu papel. Quando cai o pano, a personagem se despede da pessoa. Antígona não percorre os necrotérios à procura de defuntos a quem dar uma sepultura decente. O ator toca simbolicamente o instrumento de trabalho que é o próprio corpo. Faz com que dele brotem as formas imaginárias, extraindo do fundo comum signos que compartilha com o público. O seu talento consiste no suplemento que suscita pela sua personalidade própria, pela sua aptidão em conseguir a adesão da plateia. Não se trata de reproduzir um texto, mas de o encarnar, de o tornar vivo aos olhos da plateia. Ser um Otelo crível, com esse acréscimo sutil na interpretação que marca um momento importante e lembra que o ator é um artista e não um simples reprodutor.

         Arvorar os signos adequados não basta se eles não derem aparência da vida real. O papel não é uma série de fórmulas prontas para serem declinadas, mas uma elaboração pessoal e significativa sobre uma trama comum à qual ele acrescenta uma originalidade própria, quer dizer, uma composição. A tarefa não é encarnar um tipo ― um soldado, por exemplo ―, mas fazer com que viva um soldado singular, de carne e osso, com uma psicologia que se afasta do ator para ter vida própria. Tal desdobramento é uma arte, a experiência comum mostra dificuldade em aderir a uma construção imaginária. «Há mil coisas que um ator faz com muita facilidade na vida», diz Strasberg, «e tem dificuldade em realizar no palco em condições fictícias, porque, como ser humano, não está equipado para simplesmente brincar de imitar a vida: tem que acreditar nisso, de certo modo, e ser capaz de se convencer da exatidão daquilo que faz; caso contrário, não poderá se doar a fundo em cena»[2]. E esse trabalho do ator não é uma aquisição para todo o sempre, no desenvolvimento da personagem: cada representação implica retomar a matéria-prima do papel para apropriar-se dela novamente, no contexto sempre mutável da afetividade que se desprende da vida pessoal.

         O ator é um intérprete, como se diz de um músico; a sua criação consiste em tornar crível a ficção do seu papel, aos olhos dos espectadores.

O teatro ou a dança expõem o corpo do ator à apreciação do público. A sua própria pessoa é o material da criação, dedicada à plasticidade dos papéis, à pluralidade afetiva que lhe outorgam a cena e a expectativa do público. O ator é um profissional da duplicidade. Torna o ofício e o talento dele a faculdade de se afastar dos próprios sentimentos e de enganar graças ao uso apropriado de signos. Daí provém a fórmula de Antonin Artaud, considerando-o um «atleta afetivo», um homem capaz de endossar sem transição, e sem relação com o seu sentir próprio, as aparências exteriores das emoções ou dos sentimentos requeridos pelo papel, depois de ter experimentado diferentes versões dele. A estrutura antropológica do teatro consiste nesse privilégio, próprio do homem, de brincar com os signos para torná-los ativos, ainda que ele só acredite nisso pela metade. A sinceridade é apenas um artifício de encenação, uma arte de se apresentar judiciosamente ao julgamento do outro, deixando que este veja aquilo que ele está totalmente pronto para tornar crível.


Mímesis deslocada


Jacques Lecoq


         Se não houver ruptura radical no jogo dos signos entre o palco e a platéia, nem por isso dizer «Eu te amo» a um colega em cena ou dizer isso em outro lugar significará totalmente a mesma coisa para a atriz. Ela não é a cópia daquilo que ela é em sua existência. Na verdade, a «reinterpretação do real»C denunciada por Jacques Lecoq é dificilmente sustentável em cena, pois o corpo do teatro não é o corpo da vida quotidiana. O teatro exige uma transposição, não é algo «natural» posto debaixo da lupa, mas uma criação que desvia ludicamente signos sociais. A sua evidência depende da elaboração de um cálculo, de uma seleção entre as possibilidades expressivas da sociedade e as da dramaturgia. O ator não conseguiria ir ao encontro delas ou ignorá-las, pois a partir daí o seu desempenho se tornaria ininteligível aos olhos do público. Até num mero plano prático (acústica, visibilidade, etc.), a cena de teatro não é a da vida corrente. Na tradição ocidental, a arte do ator é uma mímesis deslocada, retoma os gestos do quotidiano, mas num contexto em que a profundidade do vínculo social perdeu toda consistência em proveito de um modo de comunicação3.

         Os mesmos signos servem de ambos os lados da cena, mas no palco eles são utilizados unicamente em torno da necessidade do espetáculo, e, portanto, ficam desenraizados em relação à sua afetividade quotidiana. Na vida quotidiana, os movimentos do corpo se inscrevem na evidência da relação com o mundo. Em cena, o ator está submetido a outra definição de suas maneiras de ser, de comer, de beber, de falar, de bocejar, de caminhar, etc. Estas estão deslocadas, ao mesmo tempo em que se baseiam nos ritos sociais da palavra e do corpo, trata-se de gestos submetidos às modulações do espaço cênico e da dramaturgia. Esse jogo implica uma tensão pessoal. Barba explica que as técnicas «extracotidianas» (as do teatro, principalmente) se fundam num desperdício de energia. A esse respeito, cita uma fórmula japonesa para saudar o ator: otsukaresama, que significa «estás cansado»: «O ator que interessou o espectador ou o comoveu está cansado porque não poupou as suas energias, e é por isso que recebe agradecimentos»4. O ator é homem do dispêndio, do trabalho sobre si, que se opõe, nesse sentido, ao homem comum, o qual não está adstrito à composição e se contenta preguiçosamente em ser ele mesmo. Barba simboliza as técnicas extraquotidianas pela qualidade de presença de um ator que contém a sua energia e vibra com ela a ponto de o seu corpo ser teatralmente vivo embora, naquele momento, não ocupe o centro da cena, embora permaneça imóvel. «É sem dúvida por isso que as supostas ‘contracenas’ se tornaram as grandes cenas de muitos atores famosos: ali, obrigados a não agir, a permanecer afastados, enquanto os outros representavam a ação principal, estes eram capazes de absorver em movimentos quase imperceptíveis as forças de ações que lhes eram negadas, por assim dizer. É justamente naqueles casos que o seu bios emergia com uma força particular e impressionava o espírito do espectador»5.


Stanislavski

         Para fabricar a sua personagem, Stanislavski pede que o ator mergulhe inteiramente numa situação afetiva da mesma ordem e que encontre as suas sensações através da memória revisitada de acontecimentos vividos a fim de os transmutar em cena com uma sinceridade «deslocada», de certo modo. Lee Strasberg, no Actor´s Studio, radicaliza o mesmo princípio: «A memória afetiva não é a simples memória, é uma memória que compromete o ator pessoalmente de modo que experiências profundamente enraizadas começam a reagir. O seu instrumento desperta e se torna capaz, em cena, de recriar aquele modo de viver que é essencialmente ‘reviver’. A experiência emocional original pode ter relação com o ciúme, com o ódio ou com o amor; isso pode ser uma doença ou um acidente... Se o espírito de alguém não lembrar imediatamente esse tipo de experiência, geralmente será sinal de que essa experiência foi feita mas ficou enterrada no inconsciente e não gosta de ser tirada daí»6. Trata-se então de suprimir a distância em relação ao jogo, que nem sequer a espessura de um fio de cabelo altere as fontes da emoção, correndo para isso o risco de alimentá-las com uma matriz pessoal sem nenhum vínculo com a intriga. Um trabalho de imaginação dramática e de reminiscências cria a força de expressão do ator. Lee Strasberg leva até o fim a constatação sociológica. A prova consiste em fazer com que uma emoção pessoal entre na ação de uma personagem imaginária mantendo o controle dos dois segmentos de si.


Treinamento do ator


         A duplicidade é a própria condição da arte do ator, que muda por completo a cada noite, profissionalmente, durante meses, o semblante da sua personagem, sem considerar os seus próprios sentimentos. A qualidade do jogo implica a distância e a escrita simbólica sobre o corpo. Diderot tem razão em denunciar a facticidadeD da sensibilidade como princípio do desempenho. Assim como o escritor não é uma natureza que exprime a sua verdade no papel, mas um inventor de palavras submetido a uma necessidade de coerência e de expressão, assim também o ator é um inventor de emoções que não existem em estado bruto, mas que ele modela com o seu talento próprio, rindo de signos expressivos socialmente reconhecíveis. Ele desenvolve um conhecimento preciso das utilizações rituais da palavra e do corpo nas diferentes circunstâncias da vida social. A sociologia do corpo não tem segredos para ele. «Nesse homem» ― diz ainda Diderot ― «preciso de um espectador frio e tranqüilo; conseqüentemente, exijo dele perspicácia e nenhuma sensibilidade, a arte de tudo imitar, ou, o que dá no mesmo, uma aptidão igual em todos os tipos de caracteres e de papéis»7.

Bertolt Brecht


         Além do emprego da palavra, a arte do ator se fundamenta no caráter ritual do rosto e do corpo, da postura, dos deslocamentos, ou da respiração. Ele não poderia modificar-lhe os costumes sem romper a significação do espetáculo. A menos que este seja baseado na opinião preconcebida ― na dramaturgia de Brecht, por exemplo ― de fazer com que o ator represente a contracorrente das convenções expressivas. Provocar a atitude crítica do espectador, para Brecht, é romper a adesão emotiva que o liga às personagens. Se assumir o seu papel com distância, espanto, contradição, em princípio o ator quebra destruirá os mecanismos de identificação, ou pelo menos uma entrada demasiado incisiva no imaginário da peça. Mas a vontade de distanciamento só funciona por se apoiar numa ordem ritual de uso do corpo. São possíveis outras concepções do jogo do ator: pode-se cortar radicalmente a palavra das manifestações corporais que costumeiramente a sustentam, estilizar os gestos e as mímicas, etc. Em Akropolis, por exemplo, Grotowski pede ao ator para compor uma máscara de desespero, de sofrimento, de indiferença, etc., tendo de permanecer assim durante toda a representação, enquanto o corpo continua a se mexer em função das circunstâncias8. Grotowski rompe a fronteira simbólica entre cena e sala, mistura atores e espectadores numa relação muito física. Sem que este o saiba, inclui o público no cenário, o transforma em figurante, projetando cada um fora da inocência. Do mesmo modo o teatro da crueldade de Artaud visa a provocar o transe do espectador, assimila o ator a um supliciado e a representação a uma zona de difusão da peste. Outro exemplo, bem diferente: Dario Fo torna o próprio corpo uma cena inteira com o seu palco de atores, representa vários papéis ao mesmo tempo, passa de um registro a outro, comenta a ação antes de se tornar uma das personagens, depois outra, etc.9

         De um modo ou de outro, todas essas concepções do jogo do ator se apóiam numa expressividade comum, quando mais não fosse na vontade de rompê-la para provocar o espanto, a interrogação, ou afirmar uma visão particular do mundo. Durante a carreira, o ator é submetido a cenas materialmente diferentes, exigindo um desempenho físico variável, uma flexibilidade em se adaptar e em se harmonizar com o ambiente técnico. Ele entra igualmente em dramaturgias múltiplas. A sua arte consiste em fazer do próprio corpo um material modulável. O treinamento do ator, que provém da dança, dos exercícios cênicos da ginástica, da prática das máscaras, etc., visa a nutrir nele um melhor conhecimento do seu instrumento. Ritualmente suprimido da vida quotidiana, muitas vezes «esquecido», o corpo está, aqui, no cerne do procedimento de formação, de treinamento ou de posta em condições.

         Com as suas diversas formas, o training visa a ampliar as competências físicas e morais do ator, a lhe dar desembaraço dos movimentos necessários a seus diversos papéis. Tal treinamento para a cena não é menos necessário do que o do esportista. Louis Jouvet dizia que as suas aulas no Conservatório visavam a que os seus jovens alunos «aprendessem a respirar»10. De fato, o teatro exige fôlego. O training é uma abertura para o mundo, uma descoberta da plasticidade de si no trabalho de criação dramática, visa a aprender a se despojar de si para acolher o outro sob as mil figuras que ele pode revestir ao sabor das criações. Há uma inteligência do corpo como há uma corporeidade do pensamento. O training e o trabalho do ator têm por base esse princípio.

         Os exercícios visam a suscitar uma distância em relação aos códigos que geralmente regem o corpo no decorrer dos rituais do quotidiano. Descondicionamento metódico, desnudamento do simbólico que impregna cada gesto, cada mímica, cada movimento, cada palavra, e autoriza a representação de si na cena social. A partir desse desapego de si, da ruptura lúcida das evidências de comportamento, o ator é devolvido a todos os possíveis da cena. O training bem pensado é um exercício de sociologia (ou de antropologia) prática, um desvio para pensar em si mesmo como outro, a fim de deslizar, a seguir, para uma alteridade desejada, que é a própria essência do trabalho do ator. Experimentar os vínculos ou as distâncias entre a palavra e a simbólica corporal, as maneiras de subverter a palavra pelo corpo ou o contrário, a fim de dar à atuação uma envergadura suplementar, aprender a brincar com códigos para os restituir com sutileza ou inventar outros.

         Nas justificativas do training, muitas vezes encontramos argumentos que desarmam o antropólogo: o homem não saberia respirar, caminhar, se mover, usar o corpo; haveria uma distância nefasta entre a palavra e o corpo, etc. Em suma: o corpo seria um «objeto» imperfeito, a ser remanejado, a ser modelado de outro modo, sob o magistério de um professor da verdade, que sabe11. Mistura ruim, a ser corrigida para dar a ele, enfim, uma forma conveniente. O corpo não está desprendido do homem a tal ponto que um repertório de receitas possa fazer com que funcione sozinho como uma matéria a ser modelada. O dualismo é uma retórica cômoda da vida corrente, uma maneira de se tornar compreendido simplificando as coisas, mas na existência não há um corpo e um espírito separados, nem sequer reunidos, e sim um homem que sonha, sem dúvida, em ser às vezes puro espírito, mas nem por isso deixa de ser ― para o que der e vier ― um ser de carne e osso. «Formatação», mais do que «formação», para retomar Alexandre Del PerugiaE, o training se inscreve então num discurso da verdade, e não numa caminhada, quer dizer: num debate íntimo com o sentido, produzindo apenas formulações provisórias e dando ao ator principalmente uma aptidão pessoal de reagir em qualquer situação. Esse fantasma do autocontrole ou do controle sobre o outro explica, sem dúvida, o sucesso atual do training e a multiplicação das escolas. Vontade de mudar a si mesmo ― não mudando a própria história ou a própria existência, mas graças a uma técnica, a uma disciplina. Espera mágica de um domínio melhor de si mesmo e da própria existência. O teatro não deve ter professores da verdade, mas professores do sentido, quer dizer: referentes que desaparecem com a revelação do outro.

Eugenio Barba

Eugenio Barba tem razão ao dizer que não são os exercícios em si que formam o ator, «mas a temperatura do processo», quer dizer o clima relacional, a qualidade de presença do responsável, o grau de adesão do grupo, o comprometimento pessoal do ator, o seu desejo de mudar, de se conhecer, a sua preocupação com aceder a outra versão de si mesmo. Os exercícios são apenas suportes, desenham a pista em que se lançar, mas não o valor do salto que, em última análise, cabe apenas ao próprio ator. O treinamento é uma técnica, um meio, e não um fim: não basta rezar para crer. A singularidade do ator sempre tem a última palavra. A realização rigorosa dos exercícios pode resultar apenas numa realização pobre se lhe faltar talento, ou seja: num modo único de se haver com as técnicas. Os meios só valem o que vale o artesão; exigem dele um suplemento de criação. E o talento não tem receitas aplicáveis em todas as circunstâncias. O training dá à luz o que já estava no ator e só pedia para se revelar. Antes de tudo, ele acompanha um indivíduo ativo em seu proceder. Antes de formar um ator, ele deve formar um homem.


     David L Breton é sociólogo e antropólogo. É professor na Universidade das Ciências Humanas de Estrasburgo ― II. É autor de muitas obras sobre o corpo. Entre elas, Anthropologie du corps et modernité [Antropologia do Corpo e Modernidade]. Paris: PUF, 2000; Du silence [Do Silêncio]. Paris: Métailié, 1997; Anthropologie de la douleur [Antropologia da Dor]. Paris: Métailié, 1995; L´Adieu au corps [O Adeus ao Corpo]. Paris: Métailié, 1999. Escreveu sobre o corpo do ator principalmente em Les Passions ordinaires. Anthropologie des émotions [As Paixões Ordinárias. Antropologia das emoções]. Paris: Armand Colin, 1998.



LE BRETON, David. «Conclusion. Anthropologie du corps en scène» [Conclusão. Antropologia do corpo em cena], p. 189-204, in BARBA, Eugenio et alii. Le Training de l´acteur [O Treinamento do Ator]. Obra coordenada por Carol Müller. Paris/Arles: Conservatoire National Supérieur d´Art Dramatique (CNSAD)/Actes Sud, 2000. — Tradução de José Ronaldo FALEIRO.



A              Michel Bouquet nasceu em Paris, em 1925. Iniciou sua carreira em 1944. Em 1946, interpretou o papel de Cipião em Calígula, de Albert Camus (com Gérard Philippe no papel-título). Bouquet interpreta tanto Strindberg, como Beckett , Pinter, Diderot e Molière, que ele considera o autor mais exigente e misterioso de todos. Faz cinema e televisão. É um dos atores preferidos de Claude Chabrol. Professor muito apreciado pelos alunos, aconselha a estes: sejam curiosos como crianças, tenham premonições às vezes e, sempre, trabalhem muito. «A personagem sempre merece ser cortejada incessantemente... Ser ator é acumular as dificuldades para se livrar delas». V. André Sallée. Les acteurs français [Os Atores Franceses]. Paris: Bordas, 1988. p. 87. (N. T.)
[1]              Cf. David Le Breton. Les Passions ordinaires. Anthropologie des émotions [As Paixões Ordinárias. Antropologia das Emoções]. Paris: Armand Colin, 1998.
B             Talvez se pudesse traduzir o vocábulo por «remendo», «arranjo», «conserto», «quebra-galho». Proveniente do francês bricolage, a palavra está dicionarizada em português e designa um «trabalho ou conjunto de trabalhos manuais ou de artesanato doméstico» (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa. 3ª ed. Curitiba: Positivo, 2004. p. 328). HOUAISS (Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 3.0) se refere ao termo como uma «montagem ou instalação (de qualquer coisa), feita por pessoa não especializada» ou uma «execução de trabalhos ou reparos caseiros fáceis (p.ex., de carpintaria), por alguém não especializado em tal coisa», ou, ainda — em sentido figurado — como uma «montagem ou combinação (de elementos diversos)». (N. T.).
                 
[2]              Lee Strasberg. Le Travail de l´Actor´s Studio [O Trabalho do Actor´s Studio]. Paris: Gallimard, 1969. p. 81. [Do mesmo autor, pode-se consultar, em português, Um Sonho de Paixão. O desenvolvimento do Método. Texto original editorado por Evangeline Morphos. Tradução de Anna Zelma Campos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. (N. T.).]
C              No texto, «rejeu du réel» [«re-jogo do real», «re-apresentação do real», «re-atua(tualiza)ção do real»]. Jacques Lecoq foi um leitor de Marcel Jousse. Para este, existe uma diferença entre «imitação» e «mimismo». O animal imita; só o ser humano é capaz de mimar. O mimismo é uma atividade humana espontânea. — « (...) a criança que olha o trem passar (...) imita espontaneamente o movimento e o som do trem.(...) Uma criança visita um castelo; de volta a casa, constrói um castelo com seus cubos de armar (...) se uma criança estiver doente e tiver de absorver remédios, vai procurar a sua boneca: esta também deverá ingerir remédios. Em todos esses casos, a criança vive uma situação e a reproduz de um modo ou de outro sem que ninguém lhe tenha pedido para fazer isso. — Vemos, à luz desses exemplos, que o mimismo compreende duas fases: uma fase que Jousse chama de intussepção (de suscipio, receber, e dentro), que é a fase da gravação; e uma fase de rejeu [rejogo, re-atuação], pois o que é gravado ou intussuscepcionado tende a ser reproduzido, refeito, expresso: rejoué [re-jogado, re-apresentado, re-presentado, re-atua(liza)do]» (FROMENT, Marie-Françoise. L´enfant-mimeur. L´anthropologie de Marcel Jousse et la pédagogie [A criança-que-mima. A Antropologia de Marcel Jousse e a Pedagogia]. Paris: Épi, 1978. p. 25. (N. T.)
3              David Le Breton. Les Passions ordinaires [As Paixões Ordinárias]. Op. cit. cap. VII.
4              E. Barba. «Anthropologie théâtrale» [Antropologia Teatral], in L´Anatomie de l´acteur. Un dictionnaire d´anthropologie théâtrale [A Anatomia do Ator. Um Dicionário de Antropologia Teatral]. Bouffonneries, 1985. p. 6. [Na edição brasileira, este passo foi assim traduzido: «Os atores que interessaram e comoveram seus espectadores ficam cansados porque não economizaram sua energia. E por isso se agradece a eles». V. BARBA, Eugenio & SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator. Dicionário de Antropologia Teatral. Tradução de Luís Otávio Burnier (supervisor), Carlos Roberto Simioni, Ricardo Puccetti, Hitoshi Nomura, Márcia Strazzacappa, Walesca Silverberg, André Telles (colaborador). São Paulo: Hucitec/Unicamp, 1995. p. 9. (N. T.).]
5              Ibid. p. 13.
6              L. Strasberg. Op. cit. p. 111.
D             «Filos. Caráter próprio da condição humana pelo qual cada homem se encontra sempre já comprometido com uma situação não escolhida» (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Op.cit. p. 865). V. também ABBAGNANO, Nicola. Diccionario de filosofía. 8ª reimpresión. México: Fondo de Cultura Econômica, 1991. p. 518. Houaiss (Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 3.0) traz os seguintes sentidos para o vocábulo: (1) «qualidade do que é factual, do que se relaciona aos fatos»; (2) na filosofia de Heidegger, trata-se de «situação característica da existência humana que, lançada ao mundo, está submetida às injunções e necessidades dos fatos»; (3) por extensão de sentido, «no existencialismo sartriano, conjunto de circunstâncias factuais cuja absoluta contingência dissolve as verdades e as fundamentações ordinárias para a existência humana, o que termina por conduzi-la à liberdade» (N. T.) 
7              D. Diderot. Le paradoxe du comédien [O Paradoxo do Ator]. Paris: Garnier-Flammarion, 1987. p. 127-128.
8              J. Grotowski. Vers un théâtre pauvre [Para um Teatro Pobre]. Op. cit. p. 68.  [«No teatro pobre, o ator deve compor uma máscara orgânica, através dos seus músculos faciais; depois, a personagem usará a mesma expressão, através da peça inteira. Enquanto todo o corpo se move de acordo com as circunstâncias, a máscara permanece estática, numa expressão de desespero, sofrimento ou indiferença» (id. Em Busca de um Teatro Pobre. Tradução de Aldomar Conrado. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987. p. 59. — id. Towards a poor theatre. Preface by Peter Brook. Holstebro: Odin Teatrets Forlag., 1968. p. 77: «In the poor theatre the actor must himself compose an organic mask of his facial muscles and thus each character wears the same grimace throughout the whole play. While the entire body moves in accordance with the circumstances, the mask remains set in an expression of despair, suffering and indifference» . — Nota do Tradutor.]
9              Dario Fo. Le Gai Savoir de l´acteur [literalmente, O Gaio Saber do Ator]. Paris: L´Arche, 1990. [No Brasil, a mesma obra foi traduzida por Manual Mínimo do Ator. Org. de Franca Rame. Tradução de Lucas Baldovino e Carlos David Szlak. São Paulo: SENAC São Paulo, 1998. — O título original é Manuale minimo dell´attore. — Sobre o autor e Franca Rame, ler VENEZIANO, Neyde. A cena de Dario Fo. O Exercício da Imaginação. São Paulo: Códex, 2002. — Nota do Tradutor.]
1                      0 Louis Jouvet. Le Comédien désincarné [O Ator Desencarnado]. Paris: Flammarion, 1954. p. 20. [Há tradução em português do Brasil de Berenice Raulino. (N. T.)]
1                      1 Sobre esse ódio implícito do corpo, remetemos à nossa obra L´Adieu au corps [O Adeus ao Corpo]. Paris: Métailié, 1999.
E             V. PERUGIA, Alexandre Del. «Les règles du jeu» [As Regras do Jogo], p. 137-143, in BARBA, Eugenio et alii. Le Training de l´acteur [O Treinamento do Ator]. Obra coordenada por Carol Müller. Paris/Arles: Conservatoire National Supérieur d´Art Dramatique (CNSAD)/Actes Sud, 2000. (N. T.)

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

TEATRO CIVILE - A Tendência Italiana

Nesta semana o Círculo Artístico Teodora apresenta para vocês uma visão sobre a tendência mais popular do Teatro Italiano contemporâneo. Esta vertente chama-se Teatro Civile, é uma variação do Teatro de Narração italiano, e nasce a partir das aulas de Dario Fo – Mistero Buffo.

Abaixo apresentamos a descrição do gênero e, a seguir, uma entrevista com Danielle Biacchesi, redator chefe de Radio24 e Il Sole 24 ore, escritor investigativo e dramaturgo italiano.

Organização e Tradução de Claudia Venturi

Marco Paolini no espetáculo "Il Racconto del Vajont" - 1997


O "TEATRO CIVILE"


TEATRO CIVILE: Termo com o qual normalmente se definem os espetáculos que levam à cena teatral temáticas de atualidade política e social. Na Itália o Teatro Civile se impôs como uma das formas mais vitais do teatro contemporâneo e ainda que se diferencie do Teatro de Narração, as suas gêneses estão profundamente interligadas.
Os atores não interpretam personagens, não entram em cena na condição de especialistas, mas como pessoas, com os seus pontos de vista e sua credibilidade, que vem carregados de função informativa e formativa.
Em poucos anos se afirmaram numerosos espetáculos de forte impacto, entre os quais Il Racconto del Vajont (1993) de Marco Paolini; Italiani cìncali (2003) de Mario Perrotta, sobre a epopeia da emigração italiana na Bélgica; Storie di Scorie (2005) sobre a má gestão dos degetos radiotivos e eFIATo sul collo (2005) sobre as lutas dos operários da Fiat de Melfi, ambas de Ulderico Pesce, Reportage Cernobyl (2012) de Roberta Biagiarelli e Simona Gonella sobre o acidente nuclear na central da Ucrânia; entre outras.
A convergência entre o jornalismo investigativo e a dramaturgia civile se deu com Biacchesse, com os prólogos destinados a Paolini.[1]

Daniele Biacchessi - "Storie d'Italia"


Lugares e protagonistas do "Teatro civile" quando as estorias viram História

O último livro de Daniele Biacchessi percorre os muitos espetáculos que que obtiveram grande sucesso nos últimos anos salvaguardando a memória nacional: “Faz aquilo que deveria ser feito pela política, pelos hitoriadores e pela sociedade.”
por SILVANA MAZZOCCHI

A memória recuperada através da potência “subversiva” da palavra é a força sedutora do Teatro Civile, um fenômeno urdido pelo trabalho e pelo talento que na Itália se impôs como uma das formas mais vitais do teatro contemporâneo e que conquistou uma multidão de fieis espectadores.
Dos massacres nazistas de Sant’Anna di Stazzena e Marzabotto[2] ao desastre doloso da represa do Vajont[3]; da matança da Praça Fontana[4] ao caso Moro[5], até o desastre de Ustica[6] e não é tudo, todos os eventos da história do nosso País, levados à cena por matadores magnéticos como Marco Paolini, Ascanio Celestini, Giulio Cavalli, Giorgio Diritti e muitos outros. Teatro Civile (Verdenero, edizioni Ambiente), o último livro de Daniele Biacchessi, jornalista, escritos e autor teatral, retorna aos locais da narração e das investigações, percorrendo tantos espetáculos que, através dos anos, contaram na Itália as verdadeiras histórias ignoradas, esquecidas ou “ajustadas” e as evoca e exalta a veia regeneradora. E emerge, através da dramaturgia e da utilização do corpo e da voz, como se pudesse reviver fatos e emoções despertando o desejo de conhecer e recordar. Muito eficientes as testemunhas velhas e novas dos protagonistas que esses espetáculos colocaram em cena (no palco, mas também nas ruas ou em uma simples calçada). Demonstrando que, enquanto deveriam ser as instituições governamentais a se encarregarem de proteger a memória nacional, foram frequentemente os narradores a carregar o peso e a criar uma ponte entre o passado e o presente. Um desafio superado, atingido fora dos teatros tradicionais e dos mecanismos produtivos e de mercado, com espetáculos ágeis, para e entre o público, e com textos nunca definidos e, ao contrário, sempre abertos a novas contribuições.
Teatro Civile restitui a vontade de não esquecer aquilo que foi e de participar daquilo que é um livro que nos mostra a face positiva da indignação, aquela que aflora quando fatos cobertos de esquecimento voltam a mover as consciências.

Espetáculo "ODISSEA. La Strage dei Proci, Canto XXII"
di Ascanio Celestini - 2015

O que é o Teatro Civile para o senhor?
“Há muitos anos, na minha cidade, na região de Monte Sole, próximo a Marzabotto, todas as noites o meu avô se colocava próximo à lareira, carregava o cachimbo, bebia um gole de grappa[7]. Então se virava e dizia para nós, crianças: “Então...”. E iniciava uma história: o vento que se infiltrava pela porta, os passos breves dos soldados nazistas ao longo das trilhas de Monte Sole, os disparos e os gritos, o silêncio. Todas as noites a mesma história, mas tinha sempre um particular que a tornava diferente. Isto é o Teato Civile, contar histórias para que elas não sejam esquecidas. E, de qualquer forma, na Itália, o Teatro Civile representa a verdadeira e grande novidade no âmbito da dramaturgia nacional, decretada por consensos de público realmente extraordinários. Pensemos ao Vajont de Marco Paolini, visto por pelo menos três milhões de pessoas, ou a Radio Clandestina, de Ascanio Celestini, que recebeu um milhão de espectadores. O verdadeiro teatro contemporâneo que o público gosta é exatamente o “teatro civile” que possui um duplo significado, porque todo o teatro, em si, é “civil”. E é político no momento em que leva para a cena episódios como aqueles de Marzabotto ou Sant’Anna di Stazzema. O que faz a diferença é a técnica da narração, que se distancia do teatro político impregnado dos anos setenta, que era mais do tipo brechtiano. Naquele, o teatro deveria passar uma ideia e fazer de tudo para convencer o público de que ela é a correta. Neste se parte de um outro pressuposto: através das histórias se desenrola a História com H maiúsculo, aquela do nosso país.”

Espetáculo "Viva l"Italia, le morti di Fausto e Iaio" de César Brie - 2014

Livros, teatro, cinema, mas até séries, música. Tudo pode contar a memória de um país?
“Este é um país que não possui memória, porque relembrar significa também colocar-se em frente de um espelho e se colocar em discussão. E é também um país anormal aquele que transfere a nós, menestréis, o dever de contar a história coletiva de uma nação, incluindo as páginas mais escuras, os anos das matanças e da estratégia de tensão[8], o senso de impunidade, os distrativos apresentados pelos representantes das instituições, as carnificinas e os desastres ambientais, os mortos pelo trabalho. Deveria ser feito pela política, mas as comissões de massacres e antimáfia concluíam muito pouco ou quase nada. Era tarefa dos historiadores que, ao invés disso, pensaram muito bem em reescrever a história colocando no mesmo nível os partigiani[9] dos republicanos de Salò[10]. Era também função da sociedade civil que perdeu o sentimento de indignação. E então? E então livros, discos, teatro, leituras podem servir para remover as consciências entorpecidas. Uma revolução cultural que coloque em primeiro plano a defesa daquilo que Pietro Calamandrei definia “o pacto juramentado entre homens livres”, a Constituição.”

O Senhor ouviu muitos interpretes, visitou os lugares da narração. Diga aquilo que, para todos, melhor representa o seu livro-manifesto.
“Não existe um lugar, mas sim lugares. Para mim contam a estação de Bolonha, a Igreja de Sant’Anna di Stazzema, Seveso, via Mancinelli, em Milão, onde foram mortos Fausto e Iaio[11]. Para Marco Paolini certamente Vajont, Ustica, os trens, as trilhas de retorno da Rússia, de Mario Rigoni Stern. Para Ascanio Celestini, o museu de via Tasso, em Roma, as fábricas, os manicômios, os call center. Para Giulio Cavalli, o aeroporto de Linate, as periferias de Milão infiltradas pela ‘ndrangheta[12]. E é assim para todos. Porque os lugares contam e porque nada deve ser esquecido, nunca.”

(Entrevista publicada no "La Repubblica", em 2010, site: http://www.repubblica.it/spettacoli-e-cultura/2010/09/23/news/passaparola_biacchessi-7344134/)

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Abaixo vídeo contendo parte do espetáculo "Il Racconto del Vajont", de Marco Paolini, o espetáculo mais popular do Teatro Civile, visto por mais de três milhões de espectadores, abrindo o caminho para o gênero cintemporâneo mais popular na Itália. O espetáculo é encenado anualmente na Represa do Vayont, desativada após o desastre, para lembrar de uma história que não queremos ver repetida.





[1] Marco Paolini é autor e intérprete de um repertório que pertence ao chamado Teatro Civile. Os seus espetáculos, grande parte monólogos, afrontam temáticas complexas. Aliás, o autor se especializou em criar espetáculos sobre desastres reais, instigando a população a lembrar dos fatos “para que eles nunca se repitam”. Paolini é considerado um dos maiores expoente da primeira geração daquele quase gênero, definido como Teatro de Narração: Um teatro que segue os rastros das lições do Mistero Buffo de Dario Fo e se fundamenta nos contos de um performer que - sem maquiagem, figurino ou cenografia – Assume a função de narrador, com a própria identidade, sem interpretar um personagem específico, mas colocando-se na posição de diversos.
[2] As duas cidades italianas, Marzabotto e Sant'Anna di Stazzena, foram deliberadamente massacradas pelos nazistas, com apoio do exército fascista de Mussolini, em agosto e setembro de 1944. Praticamente toda a cidade foi friamente assassinada, todos civis, incluindo crianças e mulheres, em ações premeditadas com o intuito de coibir possíveis apoios aos grupos rebeldes.
[3] O desastre do Vajont – ocorreu em 1963, quando uma empresa ignorou os dados técnicos e insistiu em construir uma represa em terreno instável. Ao encher a represa o terreno das laterais cedeu caindo dentro do grande lago e formando uma onda gigante que superou as comportas e destruiu completamente duas cidades que se localizavam ao seu percurso. Milhares de pessoas morreram e as cidades foram completamente destruídas.
[4] A matança de Piazza Fontana ocorreu em dezembro de 1969, em 53 minutos 5 bombas explodiram em locais com muita circulação de pessoas, em Milão e Roma, começando na Piazza Fontana em Milão. O atentado terrorista foi atribuído a um grupo neo fascista e até hoje ainda não foi completamente esclarecido.
[5] Aldo Moro – político italiano morto pela Brigada Vermelha, junto com os policiais que faziam a sua escolta, em 1978.
[6] Desastre de Ustica relata o acidente aéreo de um avião comercial que explode sobre o mar após decolar de Bolonha com destino a Palermo, em 1980. As investigações lançaram mais suspeitas do que esclarecimentos e se cogita uma trama internacional.
[7] Destilado da uva. No Brasil é conhecida também como graspa.
[8] Estratégia de tensão – é como foi conhecido um período da história italiana, na década de 1970, no qual houve um profundo confronto entre violentos grupos terroristas neonazistas e um não assumido “terrorismo de Estado”, promovido por militares e políticos, que pretendiam coibir um golpe comunista.
[9] Partigiano é como se chama na Itália o combatente armado que não pertence a nenhum exército oficial, mas a um movimento de resistência, fortemente organizado, para enfrentar o exército regular, em uma guerra assimétrica.
[10] Republicanos di Salò - Exército criado durante a segunda guerra mundial, treinado pelos alemães para combater os anglos americanos e, principalmente os partigiani.
[11] Fausto e Iaio, jovens de 18 anos que foram assassinados a tiros quando retornava pasa casa em Milão, 1978. Vários grupos assumiram o atentado. Para a polícia possivelmente teria sido realizado por um grupo neonazista. As investigações mostraram que os jovens estavam investigando, documentando, o tráfico de drogas na região onde viviam.
[12] Também conhecida como Famiglia Montalbano, Organização criminosa italiana, de cunho mafioso, da região da Calábria.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Richard Schechner - A EMOÇÃO

SCHECHNER, Richard. “L´émotion qu´on veut éveiller n´est pas celle de l´acteur, mais celle du spectateur” [A emoção que se quer despertar não é a do ator, mas a do espectador], p. 295-313, in FÉRAL, Josette. Mise en scène et Jeu de l´acteur. Tome 2: Le corps en scène [Encenação e Atuação do Ator. Tomo 2: O Corpo em Cena]. Montréal (Québec)/ Carnières (Morlanwelz): Jeu/Lansman, 2001. — Tradução de José Ronaldo Faleiro.

A emoção que se quer despertar não é a do ator, mas a do espectador



RICHARD SCHECHNER é encenador e também eminente pedagogo e teórico. Leciona arte dramática na Tisch School of the Arts da Universidade de Nova Iorque desde 1967, após ter sido professor associado na Tulane University, onde obteve seu doutorado em 1962. É também diretor de The Drama Review: A Jornal of Performance Studies.

Em 1967, Richard Schechner funda o Performance Group, que instala num lugar batizado de Performing Garage, onde trabalha sobretudo com a noção de espaço no teatro. Sua primeira produção, Dionysos in 69, se baseia em As Bacantes, de Eurípides, e aposta na improvisação e no desenvolvimento do aspecto cerimonial. Seguem, entre outras, The Tooth of Crime (1972) e O Balcão, a partir de Jean Genet (1980). Depois disso, cessa sua atividade dentro do grupo.

   Durante os anos oitenta, dirige muitos espetáculos em escolas situadas na Europa e na Ásia. É freqüentemente convidado como professor em Frankfurt e em Giessen, na Alemanha (1996 e 1997), ou no Instituto Superior de Arte de Havana (1993), bem como na Academia de Teatro de Xangai (1995).

   Em 1991, Richard Schechner funda o East Coast Artists Group, com quem continua a trabalhar até hoje como diretor artístico. Com esse grupo, encena Fausto Gastrônomo (1993), uma adaptação personalizada do Faust de Goethe, e, mais recentemente, em 1995, As Três Irmãs, de Anton Tchekhov, situando cada ato da peça em períodos diferentes. Em 1995, vai também a Taiwan para dirigir, em chinês, sua própria interpretação de A Oréstia, de Ésquilo, com o Contemporary Legend Theatre of Taipei.

   Richard Schechner publicou muitos ensaios sobre o teatro, que foram traduzidos em oito línguas. Entre essas obras, citemos Environmental Theatre, Performance Theory, Between Theatre and Anthropology e The Future of Ritual. Em 1997, co-edita, com Lisa Wolford, The Grotowski Sourcebook. Ele é também conselheiro junto a vários jornais e teatros, e editou obras em colaboração com Mary Schuman e Willa Appel.

   Recipiendário de múltiplos prêmios, é de salientar que Richard Schechner recebeu uma bolsa Guggenheim, o National Endowment for the Humanities Senior Fellowship, e, em 1997, o American Institute of Indian Studies Senior Research Fellowship.


Você pensa que existe uma teoria da atuação ou teorias da atuação?

Penso que há teorias da atuação. Isso é ainda mais verdade se encararmos a questão numa perspectiva mundial. Consideremos primeiro as teorias de Brecht e as de Stanislavski: embora ligadas uma à outra, elas são, com toda a certeza, diferentes. E se ultrapassarmos a perspectiva ocidental, veremos que as teorias de Brecht ou de Stanislavski diferem claramente das teorias do Natyashastra, de Zeami ou de Kadensho, e que essas três abordagens, embora parentes, são também muito diferentes uma da outra. Para além dessas diferenças, detectamos, no entanto, um denominador comum: todas essas teorias supõem um treinamento.

Em que esse treinamento é fundamental?

Há duas razões para isso. A primeira, é que todos os atores devem aprender certas técnicas, devem ser capazes de dominar e dirigir o corpo e o espírito como o fazem os atletas. A segunda razão, mais importante ainda, é que os atores devem ser capazes de reconhecer certos acontecimentos que ocorrem à sua volta, acontecimentos que são mais fortes do que eles, e de responder a isso. Esse jogo com um mundo exterior que nos é superior, com essas forças objetivas, constitui a vida quotidiana do ator. Paradoxalmente, o treinamento ajuda o ator a dominar o que, de certa maneira, o domina.

As duas teorias ocidentais a que você alude são contemporâneas. Diderot, em seu Paradoxo do Ator, também refletiu sobre o problema da atuação. Você pensa que as questões levantadas por Diderot são pertinentes?

         Não creio que Diderot se detenha realmente na atuação do ator. Prefiro pensar que ele se interessa pelos problemas de ordem filosófica vinculados com o “fazer de conta” ligado à atuação. Embora eu não conheça muito bem essas teorias, penso que Diderot não fala tanto de teorias sobre a formação do ator quanto de uma filosofia da representação. Na verdade, ele utiliza os problemas da atuação para discutir questões filosóficas. Por exemplo: pergunta a si mesmo se alguém pode sinceramente fingir um sentimento. Creio que, assim posto, o problema é diferente.

         Stanislavski e Brecht, assim como Zeami ou Bharata-muni, o autor do Natyashastra, preferem perguntar a si mesmos como fazer uma representação eficaz. Como os resultados procurados não são os mesmos, as respostas deles são diferentes, suas teorias também são diferentes. Em outras palavras, o que faz com que uma dança-teatro indiana seja bem sucedida não é o que torna um drama naturalista bem sucedido.

Há vinte anos, as pessoas se referiam a certas teorias. Você mencionou Brecht, Stanislavski. Podemos também pensar em Artaud, em Grotowski. Hoje em dia não parece haver teoria verdadeiramente específica. Além de Stanislavski, cuja marca continua visível, já ninguém diz fazer um trabalho brechtiano, artaudiano ou grotowskiano. Como explica o fato de que nos tenhamos afastado dessas teorias?

         Penso que com o desmoronamento da vanguarda teatral, os gurus da vanguarda também desapareceram, até certo ponto. Ou melhor: não desapareceram completamente, é verdade, mas perderam várias reivindicações. A ênfase que havia sido dada ao processo de formação, sobretudo, foi deslocada para o produto acabado, de tal modo que nos detemos hoje na cenografia de Wilson e em sua encenação, na relação particular de Foreman com o seu público e com suas encenações, e assim por diante. As pessoas disseram claramente: “Queremos resultados”. Então aqueles que, como Artaud, não se detinham prioritariamente nos resultados, foram ignorados. Artaud não foi um grande encenador, mas um grande visionário. Não se interessava tanto pelos resultados quanto pelo processo. Queria um teatro capaz de corrigir o declínio da sociedade.
        
         E eis que mais uma vez o teatro se tornou um divertimento, algo localizado na cena. Consequentemente, a técnica de aprendizagem da atuação é menos importante do que o fato de poder funcionar nas encenações. Tomemos ainda como exemplos Foreman e Wilson. Ambos afirmam que não precisam, de modo algum, de atores formados. Em certo sentido, não querem trabalhar com os atores. Querem antes que os atores façam o que se pede que façam. Não querem saber daqueles atores autônomos que exigem as teorias da atuação de que falamos anteriormente. Diga-se também que as pessoas que haviam sido liberadas por essas teorias, os próprios performáticos, em determinado momento se retiraram e se livraram dos encenadores. Não precisavam de um encenador. Faziam as suas próprias performances. É o caso, entre outros, de Spalding Gray, de Bob Caroll, de Leeny Sack.

Estes últimos se tornaram criadores.

De fato, eles se tornaram criadores. Absorveram neles mesmos a função do encenador e a do autor. Eles também não precisavam de atores, já que faziam sozinhos as suas próprias performances. Essas mutações abandonaram, portanto, os campos da teoria e da prática da atuação baseados nas propostas stanislavskianas. Como a maior parte da atividade teatral permanecia essencialmente naturalista, a técnica dos stanislavskianos continuava a ser, portanto, excelente.

Onde estão, pois, hoje em dia, as alternativas em relação às técnicas de Stanislavski?

         Os atores não podem ter em parte alguma uma formação antistanislavskiana sistemática. Há quem faça isso, é claro, mas essas pessoas não trabalham de modo regular. Ademais, nunca criaram uma escola para formar atores. Em compensação, vários encenadores formaram atores, mas somente no intuito de utilizá-los dentro de suas próprias peças, o que é, creio eu, bastante desastroso.

Ser formado num sistema de movimento codificado

Que você proporia como boa formação para o ator?

        Primeiro, levando em conta o tipo de teatro que me interessa — não é o teatro naturalista enquanto tal —, penso que os atores precisam ser formados num sistema de movimento codificado, numa outra maneira de dizer. O objetivo de tal aprendizagem não é fazer com que o ator domine uma técnica qualquer, mas que saiba o que é o movimento codificado, que compreenda o que é apelar para o corpo de modo específico.

Você aceitaria o mimo como um desses sistemas codificados?

        Não a pantomima à moda antiga, não o que Marcel Marceau faz, aliás, muito bem, mas o novo mimo, talvez. Aceitaria principalmente o balé clássico, o katakali, o odissi. Eu aceitaria também técnicas mais livres, desde que se tratasse de técnicas artísticas. Certas técnicas como o tai-chi ou o taekwondo, embora interessantes, não preparam o corpo para fazer arte mas para alcançar um bem-estar físico, o que é muito diferente.

Na verdade, o que você propõe é um treinamento da energia no corpo.

        Sim, de um modo específico e codificado. Além da aprendizagem de um sistema de movimento codificado, eu proporia também um treinamento bastante similar da voz. Há um grande número de boas técnicas vocais a que podemos referir-nos. Entre outras, penso nas técnicas de Kristin Linkletter, às da música clássica, a uma técnica inglesa também, a do Roy Hart.

        A pedra angular da criação da personagem, base que, aliás, não possuímos em nenhum sistema não naturalista, seria, na realidade, a resposta para a seguinte pergunta: Como separar a noção de personagem da noção de mimetismo, de tal modo que a personagem seja a construção de uma comunicação codificada, de um código, ao invés da imitação do que é na vida real? Não existe uma técnica ocidental profundamente orgânica para fazer isso no teatro. O exemplo mais próximo que tenhamos visto continua a ser o que Pina Bausch faz com o Wuppertal Tanztheater. Os atores de Pina Bausch são também dançarinos. Interpretam palavras como tocam com seus corpos. Adoraria fazer um Brecht ou um Tchekhov com essas pessoas. São capazes de executar movimentos que são quase como na vida comum, mas que de certa maneira são oblíquos. Algo diferente está impresso em seus gestos. Pode ser a alienação, a  fratura, a abertura. Consequentemente, podemos imaginar fazer um texto em que os movimentos não sejam naturalistas. Para trabalhar todos esses grandes textos que até aqui só foram vistos numa única perspectiva, penso que o que o Wooster Group faz também poderia ser utilizado, mas menos violentamente.

Em certas oficinas que o vi ministrar, você exigia que os atores fossem procurar seus próprios gestos pessoais e que depois os utilizassem no trabalho. A seguir, você os estilizava, cortando, escolhendo. Uma de suas alunas dizia que você purificava os gestos, que você os depurava. Todos os gestos em cena devem obedecer a esse princípio e ser retirado da vida comum?

        Não, todos os gestos devem ser extraídos de nossa própria experiência, mas nossa própria experiência não é apenas a da vida comum. Por exemplo: num dos exercícios que proponho em oficina, peço aos atores para pensar num acontecimento muito importante em sua vida. Depois de terem pensado nisso, digo a eles: “Agora, lembrem os cinco primeiros minutos, a raiz desse acontecimento, e vamos reconstruí-lo”. Vários gestos que aparecem nesse exercício são totalmente extraordinários porque correspondem ao início de cada acontecimento. Portanto, são muito importantes para cada um. No decorrer desse exercício, quero que as pessoas sejam capazes de recordar muito precisamente o que o seu corpo fez. O que me interessa não é o que sentiram, mas o que o corpo delas fez naquele exato momento. Aliás, digo a eles: Se sentirem qualquer sentimento que seja, deixem que passe por vocês, assim como o vento passa através de uma rede. Não peguem segurem o sentimento, deixem que se vá”.

A emoção é a parte menos importante da representação

E na dinâmica da representação, que lugar é assumido pela emoção?

        Contrariamente ao naturalismo convencional, em que a emoção do ator é o que está em jogo, considera-se aqui essa emoção como a parte menos importante da representação. Nesse sentido, trata-se do oposto de Stanislavski. Como em certo teatro asiático, a emoção que se quer despertar não é a do ator, mas a do espectador. Se o espectador recebe emoções em demasia, só pode responder com emoções similares: vai chorar se você chorar, vai rir se você rir. Em compensação, se deixarmos em aberto a questão da emoção, se alguns relatos não carregarem necessariamente consigo a emoção prevista, poderemos descobrir coisas novas sobre esses relatos. Assim, em vez de procurar reter a emoção, o ator deixa que ela flua. Por exemplo, Romeu e Julieta não vão se amar — embora saibamos que se amam de fato —, vão mais expressar calor um pelo outro.

Você não receia que escolhas como essa resultem numa representação fria, formalista?

        Há uma fase, durante os ensaios, onde realmente é muito frio. Em compensação, quando olho as representações que faço, depois de terminadas, nunca são frias.

Como o essencial do seu trabalho se refere à atuação do ator, em que momento você decide introduzir o texto?

        Se eu tivesse escolha, deixaria o próprio trabalho propor os textos. Já não seria o texto que testaria o grupo, mas o grupo que testaria[1] o texto. Habitualmente, primeiro temos um texto, e convidamos pessoas para virem fazer um teste. Escolhemos as pessoas que possam convir a um texto preexistente. É um casamento arranjado. Eu gostaria de fazer o contrário. Gostaria de escolher as pessoas com as quais quero trabalhar e só depois fazer com que estabeleçam relações com diversos textos, até que o melhor se revele. Toda pessoa que fez seus estudos em teatro conhece vários textos. Portanto, poderíamos facilmente dizer: “Esta semana vamos experimentar Tchekhov ou Brecht ou uma nova peça”. E finalmente acabaríamos por encontrar um texto que conviesse perfeitamente ao grupo. Então os atores tentariam dobrar o texto às necessidades deles ao invés de se conformar a eles. Obviamente, é uma abordagem diferente da que se costuma fazer, mas, na minha opinião, esta é mais apropriada porque, no momento em que é escolhido, o texto já foi trabalhado, de certa maneira.

E depois de ser escolhido o texto, este influencia na atuação dos atores?

        O texto influi, é claro, mas não se deve presumir que o texto sempre esteja correto, e o ator sempre esteja errado. Suponhamos que uma cena não funcione. Digamos que a cena do quarto, entre Macha e Verchinin, em As Três Irmãs, não seja interessante: não se deve pressupor que os atores não sejam capazes de representar a cena, como também não se deve presumir que o próprio texto deva ser reescrito, que as palavras devam ser mudadas. Em compensação, a intenção do texto pode ser mudada. Por exemplo: pode-se rejeitar a ideia de que Verchinin é atraído por Macha. É o que diz o texto, mas isso pode não ser verdade. Pode-se determinar que ele diz isso porque tudo é melhor do que a sua mulher, ou porque ele sente o contrário. Não se deve dizer necessariamente que o texto está correto. Pode-se também fazer a escolha de não pressupor nada quanto à significação do texto, supor que a enunciação das palavras dirá a história e trabalhar mais sobre o corpo. Assim deixamos as palavras acompanhar outro texto, o da representação.

"Mother Courage" dirigido por Schechner nos anos 1970
Utilizar o texto de diversas maneiras

O texto, portanto, é uma inspiração. Você não o utiliza em si mesmo.

        Às vezes sim, às vezes não. A única coisa que faço custe o que custar é utilizar o texto de diversas maneiras na mesma representação. Essa utilização não tem que ser uniforme. Na verdade, toma-se a decisão de interceptar o texto em certo ponto e, nesse momento, pode-se representar fielmente o texto ou pode-se deixá-lo de lado. Por exemplo: no meio da cena, Macha e Verchinin podem parar de dizer o texto, e um orador pode substituir o texto, dizendo simplesmente: “Então, Macha lhe disse, e em seguida, por sua vez, ele lhe disse”. Podemos ver apenas aquelas pessoas que se mantêm lá, de pé, como num filme. As silhuetas ainda estão lá, mas já não as ouvimos. Podemos até inspirar-nos na publicidade, decidindo por utilizar legendas. Nesse momento, podemos acalmar e mostrar simples e rapidamente numa tela o que aquelas personagens estão dizendo uma para a outra, sem que com isso se trate de pantomima. Todas essas possibilidades são pensáveis. Não devemos simplesmente supor que o texto tenha que ser dito pelas personagens, por Macha e Verchinin.

O ator não encarna, portanto, uma só personagem. A personagem se desloca.

A personagem pode se deslocar, mas o ator sempre interpreta a partitura da representação, e essa partitura começa no momento em que ele entra e se veste. Ela continua até a saída dele. Em certos momentos, o ator pode interpretar uma personagem e, em outros momentos, já não interpretar essa personagem. Por exemplo: o ator pode encarnar uma personagem e dizer o texto dessa personagem, ou então dizer o texto que corresponde a um papel sem interpretar este último, ou ainda não dizer o texto de uma personagem e estar interpretando esta mesma personagem. Não inventei essas teorias, mas tenho a minha própria concepção sobre elas.

Até que ponto a improvisação é importante em seu trabalho?

        Como dispositivo de treinamento, ela é muito importante, mas não improvisamos num sentido stanislavskiano. Improvisamos para encontrar diferentes gestos no ator. Estou interessado em encontrar no ator modos de ressoar, de mover-se, de olhar, e não necessariamente modos de tornar-se outra pessoa. Esses modos diferentes de fazer e de ser podem dar ao espectador a impressão de ver outra pessoa, porque não é o ator assim como estamos habituados a vê-lo, ao passo que o que o espectador vê, de fato, talvez seja a pessoa comum, pura e simplesmente. Há tantas facetas possíveis para nossas personalidades, e todas essas personalidades podem gerar diferentes gestos e diferentes entonações. Por isso, aliás, quero que os atores sejam bem treinados física e vocalmente, de tal modo que, se a sua câmara interna vir que eles são se movendo de certa maneira, sejam capazes de fazê-lo, muito exatamente.

Você disse anteriormente que a partitura da representação começava no momento em que o ator chegava ao teatro e se vestia. Qual a importância do figurino, para você, e a que etapa do processo de criação ele aparece?

        Primeiramente, quando o ator vem à oficina, considero como importante que vista roupas de trabalho. É uma espécie de ritual. Essa vestimenta pode ser comum, mas não será aquilo que ele usou no prédio, para que fique claro para mim que, agora, ele está pronto para trabalhar.

Mas não é uma roupa: é um figurino.

        No início e durante os dias de aquecimento, é uma roupa. Mais tarde, em compensação, podem-se utilizar certos elementos dessa roupa no figurino.

E a que momento os figurinos de uma representação serão determinados?

        Em geral peço aos atores para que eles mesmos selecionem os elementos de figurino. Todos temos coisas que preferimos. Podemos, por exemplo, usar óculos de várias maneiras diferentes. Portanto, em certo momento, o ator começa a encontrar as coisas que prefere, quer elas representem para ele a personagem, quer elas lhe pareçam necessárias. Nesse momento começa a criação dos figurinos. Na verdade, quero que meus atores adotem certo fetichismo, necessário à criação de suas personagens. Esses fetiches não devem, de modo algum, ser vestimentas. Por exemplo: o que funcionou muito bem para Mãe Coragem foram os rolos que ela usava nos cabelos. Para encrespar os cabelos, ela usava esses rolinhos característicos de certas mulheres da periferia. Eles se tornaram uma espécie de símbolo fetiche de Mãe Coragem. Em certo sentido, isso mostrava que ela não se preocupava com a aparência, porque se mostrava com rolos no cabelo. Por outro lado, isso deixava supor também o contrário, porque por trás dos rolos de cabelo havia a intenção de se pentear. Ela não era como uma alemã do século XVII, mas como uma mulher americana dona de casa. No entanto, todas as suas palavras, todas as suas referências pertenciam à Alemanha do século XVII. Os espectadores não podiam situá-la numa época precisa, mas Mãe Coragem fazia com que refletissem sobre a própria vida deles, e era o que queríamos. Não é o tipo de coisa que se pré-invente.

É o perigo que cria a presença

Duas noções voltam com frequência no ator: a de “energia” e a de “presença”. Que pensa dessas noções?

        Existe realmente algo que se chama a presença do ator vivo. Penso que essa presença tem a ver com a noção de eventualidade. Em outras palavras, quando o espectador percebe que o ator pode não só mudar o que está fazendo, mas que pode também ser o dono dessa mudança, que não tem que mudar, mas pode eventualmente fazê-lo, nesse momento o ator tem presença. Em compensação, se o espectador sente que toda e qualquer mudança apavora o ator e corre o risco de destruir a representação, não há presença. Na verdade, o ator brinca com o perigo, e o perigo por ele gerado é que cria a presença.

        Pode-se também explicar a presença apelando para a noção de desequilíbrio de Eugenio Barba. Em termos concretos, o ator é capaz de produzir um desequilíbrio, de recuperar o equilíbrio e de produzir, em seguida, outro desequilíbrio. É esse desequilíbrio, esse conflito intrínseco, no corpo e no espírito do ator, que criará a presença. Assim, se dou uma conferência e as coisas estão indo bem, posso parar no meio de uma frase, e os espectadores vão esperar a sequência — não porque estejam escutando, mas porque sabem o que vou dizer e ao mesmo tempo não sabem o que vou dizer. Portanto, querem ver o que vai acontecer depois.

E quanto à energia?

        Você sabe: os chakras, o movimento através do corpo..., toda essa formação é capaz de dar a um ator a capacidade de ter um impulso, de ter consciência dele e de poder escolher se o segue ou não. Como já disse, a noção de emoção ou de sentimento que passa é uma coisa muito difícil de controlar. O ator deve ser, até certo ponto, capaz de ser dois em um, de se manter ao lado de si mesmo e de ver a si próprio. Ele deve saber, por exemplo, que ao se sentar assim, prostrado, deve ser porque escolheu sentar-se assim e não porque não pode sentar-se de outra maneira. Ele deve ser capaz de apoiar-se no fundo do estômago ou na base da coluna vertebral. O ator deve ser disponível para a energia, e é através do treinamento que acede a essa disponibilidade.

Portanto, deve-se treinar para ter energia? Não é algo que se tenha dentro de si?

        Não.  Deve-se treinar para ser capaz de receber o que está sendo comunicado, para ser capaz de se concentrar nisso e, por sua vez, para tornar a dá-lo

E como treinar para isso?

        Há vários exercícios bastante clássicos. Entre outros, penso nos exercícios de espelho: o ator vigia uma pessoa e deve ser capaz de reproduzir o que essa pessoa faz. Há também os exercícios de confiança. Por exemplo: consentimos em cair e ser levantados. Gosto também de utilizar um exercício de confiança que se chama o “guia cego”. Vendamos os olhos de certas pessoas e pedimos a elas para dirigir as outras. Quem não está vendado deve seguir tudo, impedindo aqueles que dirigem de bater contra as paredes e contra os objetos. Isso requer muita sensibilidade dos outros. Na realidade, todos esses exercícios são um treinamento para ser disponível ao que os outros fazem.


A estar presente?

        Sim. Para mim é muito difícil distinguir entre a presença e a energia. Penso que o treinamento conduz às duas. Em minha opinião, as noções de presença e de energia são parentes muito próximas da vigilância e da responsabilidade, do que Stanislavski chamaria a concentração. Não creio na energia como num líquido místico que entra e sai.

Quais seriam as qualidades fundamentais que um ator deve possuir em cena?

        Concordo com Stanislavski, que diz que ninguém sabe realmente aquilo que faz com que alguém seja um grande ator, mas que sabemos o que é o resultado de um grande ator. É uma pessoa em cuja presença queremos estar e que nos encanta. Nota-se em certos atores algo particular que não se vê necessariamente em outros atores, mas que está sempre presente. Tem-se a impressão de que são mais vivos do que todo o mundo nessa circunstância precisa. Há na vida certos momentos em que cada pessoa se torna totalmente viva. Podem-se chamar esses momentos de “presença”, ou grande alegria, ou gozo. É esse tipo de alegria que faz com que um ator seja grande; é sua habilidade em experimentar essa alegria diante de outras pessoas numa situação de representação.

        Na representação, invadimos a intimidade de alguém que quer aceita compartilhá-la conosco. Na vida real, há todos os tipos de barreira que erguemos em torno desse tipo de intimidade. Essa intimidade não deve ser uma coisa secreta como a sexualidade ou a violência. Há como que uma partilha, como que uma reciprocidade positiva entre os participantes e a pessoa em representação. É o que faz com que representar seja esse fechamento do círculo de energia positiva e de gozo sem considerar o propósito do tema. De certo modo, aplaudimos nossa participação, “essa pequena parte de vida”, essa criatividade primária. Às vezes existem pessoas especiais que admiramos por causa dessa qualidade, desse modo de ser inteiras e completas. É ela que constitui essa alegria e que torna essa alegria uma questão pública.

Há um modo de formar ou de desenvolver essa presença?

        Há maneiras de se formar, mas elas são especificamente culturais. Não creio que haja um modo universal de se formar. Isso depende sempre daquilo a que estamos expostos.

        Não se trata de um ponto de partida. Um ponto de partida seria mais certo modo de sentar-se ou de ficar de pé. Sempre começo, por exemplo, com a ioga para respirar e estar atento ao momento presente. Posso produzir ressonadores vocalmente com bastante força, por meio de exercícios de ressonadores bem precisos. Há também modos precisos de caminhar e de saltar. Em outros termos, tudo se baseia no físico. O ator deve trabalhar de modo construtivo, a fim de desenvolver certas aptidões. Deve trabalhar também para se livrar de seus bloqueios. Para se livrar dos bloqueios, assim como para estimular uma atitude, a energia estará presente, porque temos, todos, uma força vital. Mas a ideia é que nos servimos de nossa vivacidade expressiva por duas razões: uma é a inibição; a outra, a aprendizagem. Creio que uma das razões pelas quais as formas asiáticas são tão boas não é porque a formação dos atores seja melhor, ou porque as teorias asiáticas sejam superiores às teorias ocidentais, mas porque os asiáticos não têm medo de fazer com que dure muito tempo a formação, não têm medo de lhe dizer que você só será bom daqui a dez anos, enquanto nossos estudantes querem ser bons em dez minutos. Uma jovem francesa ou uma jovem americana que estudam violino sabe que não será capaz de tocar violino em dez minutos, num ano ou até em cinco anos; que em cinco ou seis anos ela poderá tocar para sua satisfação pessoal, e que precisará dez anos para se tornar profissional. Portanto, esperamos que nossos músicos e nossos dançarinos de balé saibam isso, mas, de certo modo, não o esperamos de nossos atores, por causa dessa crença errônea que pretende que a arte de transpor o comportamento de todos os dias é idêntica à do comportamento de todos os dias. Mas o realismo já não é um comportamento quotidiano, como não o é uma tela: é um erro acreditar que todo o mundo pode fazê-lo e que isso não necessite de nenhuma técnica. Nosso erro vem daí.

Os atores devem adquirir uma formação técnica aprofundada?

        Deveriam passar por um longo período de formação física e psicológica se quiserem ser verdadeiramente bons. Eles não o farão enquanto não tivermos um teatro profissional que possa sustentá-los. Na Ásia, pelo menos no Japão, em Taiwan, e, até certo ponto, na Indonésia, os atores que se destinam às formas tradicionais têm o apoio dos teatros nacionais tradicionais. É o caso de nossas orquestras sinfônicas e de nossos balés. Na Europa e na América do Norte, os artistas adquirem uma formação de longa duração. Deveríamos ser capazes de dizer que o trabalho dramático efetuado nas grandes escolas é feito tão seriamente quanto a formação em música, mas não é o caso.

        Quando vai a suas aulas de música, minha filha diz: “O professor é muito severo”. Quando, porém, ela vai a suas aulas de arte dramática, é só brincadeira. Não sou contra isso, mas se ela quiser ser uma boa atriz, deve tornar-se tão séria nesse curso de arte dramática aos sete anos quanto o é em seus cursos de música. Ora, essa visão não faz parte da cultura ocidental. É aí que se situa a causa dos males. Não pensamos a arte dramática da mesma maneira, porque há um preconceito antiteatral que opera. Vamos corromper nossos filhos procedendo assim: eles não levarão o teatro a sério, enquanto levam a sério a música e o esporte. Temos grandes atletas e grandes músicos, mas não temos tantos grandes atores. Trata-se de uma atitude cultural e não de algo que diga respeito à natureza das próprias artes.

Com Eugenio Barba, você é um dos homens de teatro mais marcados pelo Oriente. Por que esse fascínio?

        O Oriente teve uma enorme influência sobre mim com o passar dos anos. Não no início, porque só conheci o Oriente em 1971, data da minha primeira viagem à Ásia. Na época, eu já tinha feito Dionysos in 69. Eu tinha tido um teatro em Provincetown, tinha tido um teatro em Nova Orleans, e já tinha escrito sobre as relações entre as peças de teatro, os esportes e os jogos. O que encontrei na Ásia foi uma confirmação das ideias sobre as quais eu havia trabalhado: uma codificação dessas coisas. O que eu captei de mais importante na Ásia foi a ioga, que estudei em Madras em 1971. Era uma formação profunda da vida, que continuo a utilizar.

        Transmiti essa formação aos atores. Isso teve duas consequências: a primeira é que formo na ioga todos os atores com quem trabalho. Grotowski também o fazia, mas já não o faz. Ele diz que isso o torna demasiado calmo. Meu sentimento diante dos atores americanos é que eles sempre querem se mexer demais; então, um pouco de calma não pode lhes fazer mal. A segunda consequência é a própria atitude da ioga, que vincula o movimento e a respiração ao espírito e à alma. A mim parece fundamental que a mais elevada aspiração que o homem possa alcançar seja baseada em movimentos e em respirações muito simples. É uma meditação em que a respiração age enquanto movimento. É muito físico, não precisamos crer para fazer. É uma metafísica enraizada no real porque contamos as respirações. Essa atitude faz com que tudo comece com o físico, o psicofísico e o metafísico, que na realidade são a mesma palavra. Uma leva à outra e vice-versa. O metafísico leva diretamente ao físico, assim como o físico leva diretamente ao metafísico. Não é que um seja mais nobre do que o outro. Eles são apenas diferentes, estão em círculos diferentes. Isso é importante para mim.

        Há também a relação com o espectador, com o auditório, com os participantes — nenhuma dessas palavras é totalmente justa —, que é especial, no Oriente. Precisamos de um segundo grupo que nos ampare no mesmo espaço. Embora o tenhamos, no Ocidente, na Ásia eu o vi muito poderosamente. Isso foi muito importante, não tanto pela simples participação do público, mas pela integração das coisas, como o simples fato de oferecer representações em que as pessoas podem ver. Não gosto dos teatros em caixas pretas. Quero que as paredes sejam pintadas com cores claras para que nós, que somos colocados  do lado de fora, vejamos, que os espectadores se vejam uns aos outros. É diferente dos cinemas, que exigem o escuro e onde não vemos os outros. No teatro, precisamos de luz, deveria haver luz na sala. Esse modo de estar em comunidade ou em coletividade, que inclui os espectadores, é totalmente fundamental para mim.

Além disso, há coisas bem simples relativas à hospitalidade. Por exemplo: no início das representações asiáticas, há normalmente uma espécie de ritual para receber o público. Gosto de praticar também esse tipo de recepção. Creio que às vezes queremos tornar as coisas demasiado cômodas para o público. Se não pudermos fazer com que a magia entre num contexto de sociabilidade, não haverá muita magia. Quero desmistificar o processo. Faço ensaios públicos. Vemos isso na Ásia, mas também em outros lugares. Uma ou duas vezes por semana, qualquer pessoa pode vir a nossos ensaios. Vindo nos ver, as pessoas se tornam nossas parceiras. Brecht fazia isso. Ele era capaz de levar pessoas da rua. Tudo isso visa a desmistificar o processo da representação, a aumentar o seu poder, e não a diminuí-lo.

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—™ SCHECHNER, Richard. “L´émotion qu´on veut éveiller n´est pas celle de l´acteur, mais celle du spectateur” [A emoção que se quer despertar não é a do ator, mas a do espectador], in FÉRAL, Josette. Mise en scène et Jeu de l´acteur. Tome 2: Le corps en scène [Encenação e Atuação do Ator. Tomo 2: O Corpo em Cena]. Montréal (Québec)/ Carnières (Morlanwelz): Jeu/Lansman, 2001. — Tradução de José Ronaldo Faleiro. —™


[1]              Traduzi por testar o verbo auditionner, “fazer uma audição” para conseguir um trabalho, ouvir um artista com a intenção de contratá-lo. Ouvir (e ver) para avaliar. — JRF.