sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Teatro do Oprimido - encontro internacional

Encontro internacional discute o papel do Teatro do Oprimido na transformação da sociedade
O Encontro, organizado pelo MST, foi proposto há um ano a partir da necessidade de conhecer e debater as experiências ligadas ao Teatro do Oprimido em todo mundo.
Matéria Publicado no site: http://www.mst.org.br/ em 4 de julho de 2016


Por Janelson Ferreira e Maria Silva
Da Página do MST

Durante os dias 27/06 a 02/07, cerca de 100 militantes estiveram reunidos no Encontro Internacional de Teatro do Oprimido, na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em Guararema, São Paulo. Grupos de teatro do Uruguai, Argentina, Portugal, Israel, Índia, além de vários outros do Brasil buscaram discutir a contribuição do Teatro do Oprimido para a classe trabalhadora e a importância desta ferramenta na atual conjuntura.
O Encontro, organizado pelo Setor de Cultura do MST, foi proposto há, aproximadamente, um ano, a partir da necessidade de conhecer e debater as experiências ligadas ao Teatro do Oprimido em todo mundo.
Durante a atividade, a militância buscou aprofundar as técnicas, além de compartilhar todo o acúmulo obtido por esta forma teatral que, surgida no Brasil, está presente em todos os continentes. A proposta é que, a partir desta atividade, se constitua uma articulação internacional entre os Grupos de Teatro do Oprimido.
Segundo Júlio Moreti, Dirigente Nacional do Setor de Cultura, o Encontro foi fruto de um esforço coletivo e representa um momento histórico para o Teatro do Oprimido (TO).
“Aqui nos permitimos discutir abertamente a função do TO para a classe trabalhadora e analisamos seus limites para que, assim, possamos avançar com esta que é uma potente ferramenta para trabalhadores e trabalhadoras”, afirmou Moreti.
No decorrer do encontro, os grupos de teatro apresentaram suas peças e, ao final da apresentação, elas foram analisadas e debatidas, a fim de gerar uma discussão crítica sobre a técnica utilizada.
De acordo com Moreti, o teatro permite à classe trabalhadora se confrontar com as contradições existentes dentro do capitalismo. “O Teatro do Oprimido permite nos colocarmos na posição do oprimido e da oprimida e, não impor respostas, mas problematizar situações cotidianas que são naturalizadas na sociabilidade capitalista”, finaliza.

“O Teatro do Oprimido permite nos colocarmos na posição do oprimido e da oprimida e, não impor respostas, mas problematizar situações cotidianas que são naturalizadas na sociabilidade capitalista”

Teatro do oprimido e transformação social

O Teatro do Oprimido é um método teatral elaborado por Augusto Boal, teatrólogo brasileiro, durante a década de 60 e 70. O método busca democratizar o acesso à prática teatral e fazer com que, por meio desta linguagem, a população pobre possa discutir as possibilidades de transformação social.
Por ser um método, o Teatro do Oprimido sistematiza diversos jogos, técnicas e exercícios teatrais que estão acessíveis a qualquer pessoa, independentemente de formação específica. Entre suas técnicas estão o Teatro-Fórum, Teatro-Invisível, Teatro-Imagem, Teatro-Jornal, e outros. Todas elas são usadas pelos grupos de teatro para discutir, tanto no campo quanto na cidade, questões como o machismo, lgbtfobia, racismo e exploração do trabalho.
Um dos participantes do encontro foi o Grupo Casoneros de Teatro do Oprimido, de Buenos Aires. Ele surgiu na capital argentina, em 2001, a partir da necessidade que alguns militantes, que tinham contato com o TO, verificaram de fortalecer o método naquele país.
Para o Casoneros, o campo subjetivo e metafórico é um elemento fundamental dentro da sociedade capitalista e, por isto, tem importância central para a construção de uma análise crítica anticapitalista da sociedade atual. É neste ponto que se valida o dispositivo do Teatro do Oprimido, pois ele permite a abertura de discussões que não estão imediatamente visíveis para a sociedade.

O Encontro Internacional de Teatro Político Augusto Boal

O encontro de Teatro do Oprimido ocorrido na ENFF foi o que os coordenadores do mesmo definiram como um desdobramento imediato do I Encontro Internacional de Teatro Político Augusto Boal, que aconteceu em Maricá durante o I Festival Internacional da Utopia, entre os dias 22 a 26/06. Diferente do sediado na Escola Nacional, estiveram presentes grupos e pessoas que trabalham com técnicas que não apenas as do TO.
O Encontro transformou Maricá num grande palco, por vezes ao ar livre, como as apresentações que aconteceram nas ruas, no Anfiteatro da Praça Central da cidade ou na Feira da Reforma Agrária e Economia Solidária. Outras vezes, aconteciam no tablado da sala do cinema público, ocupado e adaptado para receber a atividade. Lugares que se tornaram espaços de troca entre espectadores e atores. Em alguns casos, o público acabou assumindo o papel de "espect-ator", na definição do dramaturgo e criador das técnicas do Teatro do Oprimido e o homenageado do encontro, Augusto Boal.
Foram cinco dias de atividades entre intervenções, debates, oficinas e apresentações. Apenas nas apresentações dos espetáculos estiveram presentes em torno de quatro mil pessoas, dentre as quais algumas turmas das escolas públicas de Maricá, que fizeram questão de transferir em alguns dias a sala de aula para o teatro. Ao todo, 14 grupos apresentaram-se, alguns por mais de uma vez e em diferentes espaços. Na composição, várias técnicas e modos de se realizar o fazer teatral e apresentar as discussões.
Segundo Douglas Estevam, do Coletivo de Cultura do MST, tanto um encontro quanto o outro “tinham preocupações importantes em fazer uma análise das questões formais e estéticas do teatro político atual”. A maioria dos grupos participantes dos dois encontros desenvolvem trabalhos ligados aos movimentos sociais e à luta política nos seus países de origem.
A escolha e convite dos grupos que participaram do Encontro Internacional de Teatro Político, não foi de maneira nenhuma aleatória. Muitos destes se destacam pela proximidade com os movimentos sociais, sindicatos, organizações políticas, ou mesmo organizações de bairro.
É esse o caso de grupos como o Jana Sanskriti, da Índia, e outros grupos da América Latina, como relata Estevam: “Praticamente todos os que foram convidados pelo MST tinham essa característica. Talvez um dos mais interessantes, de maior destaque, foi o grupo da Índia, o Jana Sanskriti, pela sua história, porque é um grupo que tem mais de 30 anos de existência e que fazem trabalhos sobre os problemas da organização dos partidos, dos movimentos sociais, os processos de cooptação da militância dos partidos e também trata de temas de gênero, das questões culturais do seu país, como por exemplo, a questão do casamento forçado das mulheres”, tema da apresentação do grupo na primeira noite do encontro.

Apresentação do grupo Jana Sanskriti, na primeira noite do encontro.


Nesses 30 anos do Jana Sanskriti, mais de 20 mil pessoas passaram pelos processos de formação e se organizaram em atividades teatrais em torno do trabalho do grupo.
“Outro destaque foi o GTO Montevideo, que no seu país se organizou, por exemplo, com intervenções de teatro-jornal em torno da campanha de redução da maioridade penal e do plebiscito que houve sobre o tema”, e que por isso, acaba dialogando muito com movimentos sociais também no Brasil, os quais se propuseram a fazer discussões e mobilizações sobre essa pauta.
“O grupo da Argentina, o Casonero, é também vinculado a um movimento social chamado La dignidad, que tem um trabalho de organização das comunidades nos bairros, organização de restaurantes populares, de serviços sociais, etc. O grupo chegou a construir uma escola popular de teatro na Argentina. Então, tem uma experiência pedagógica, que para nós é também muito interessante”, relata Douglas.

Diversidade regional

Dos grupos do Brasil, o objetivo do encontro em Maricá foi a tentativa de sair do eixo Rio-São Paulo, muito conhecido pela concentração das mais variadas atividades e propostas culturais. Por esse motivo, um dos grupos que participou foi o Alfenin, da Paraíba, que atualmente desenvolve um trabalho muito importante pela região Nordeste do país.
Mesmo assim, participou de São Paulo o grupo Estudo de Cena, que tem uma vinculação muito estreita com movimentos sociais, como o MST, apresentando-se em diversos espaços organizados por este e, em alguns momentos, contribuindo diretamente na formação dos militantes da organização, em oficinas e debates.
Além dos grupos parceiros, o MST também se fez presente com a Brigada de Teatro Patativa do Assaré, na apresentação d'A farsa da justiça burguesa, montada por integrantes da brigada do estado do Pará.
A ideia de se fazer um encontro internacional surgiu a partir da necessidade de estreitar laços com grupos de teatro político ao redor do mundo. Coisa que o MST já vinha fazendo ao participar de algumas mostras, de processos de formação, festivais, etc.
“A gente foi se aproximando de alguns grupos e pautando a necessidade de ampliar esses vínculos, de chegar num encontro entre grupos de vários países que desenvolvem trabalhos no teatro político, além de ir consolidando uma articulação, uma troca de experiências, de debates estéticos, organizativos e de luta no campo teatral”, explica Estevam.
Numa clara intenção de se diferenciar de outros festivais e encontros de teatro, que não se reivindicam encontros políticos, a nomeação deste como Encontro Internacional de Teatro Político enfatiza essa dimensão do fazer teatral enquanto instrumentos de luta e reforça essa perspectiva no encontro e no trabalho desses grupos.

Segundo Estevam, a ideia é que esses encontros continuem gerando frutos. “Daqui já saíram algumas propostas, de continuar esses intercâmbios, de trabalho em conjunto de formação entre os grupos, de intervenções conjuntas e de criar cursos latino-americanos de formação em teatro político. Então, essa articulação entre os grupos tende a continuar e se fortalecer mais a partir dessas duas atividades”, conclui.

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Denise Fraga - “o público quer pensar, sim”

Matéria publicada no site: teatroemcena.com.br em 30/06/2016.

(foto da matéria original)

Em cartaz com Brecht, Denise Fraga diz: “o público quer pensar, sim”

“Em primeiro lugar, quero dizer que estou muito feliz. Muito feliz com essa peça”, Denise Fraga se apressa em falar assim que ouve a primeira pergunta da entrevista para o Teatro em Cena. A empolgação com que fala sobre “Galileu Galilei” ao longo de uma hora atesta sua sentença inicial. Hospedada em um hotel no Leblon, ela desfruta de um raro dia de folga. Vem de uma turnê de um ano e meio, que começou com uma temporada em São Paulo, e já acumula público total de 90 mil pessoas. (até o momento da publicação da entrevista)
No dia anterior à entrevista, se dedicou ao cronograma da Rede Globo. Ela fará apenas três capítulos da trama de Maria Adelaide Amaral e Vincent Villari, mas sua escalação chama a atenção: Denise não fazia novela há 20 anos. É um caso raro de atriz que conseguiu reconhecimento no Brasil sem fazer novela – não que ela tenha nada contra. Mas foram nove anos de “Retrato Falado” no “Fantástico” e, claro, muito teatro. Denise Fraga se autoproduz e tem seus próprios projetos. “Galileu Galilei” é seu segundo Brecht. Apaixonada pelo dramaturgo alemão, ela se desafiou a interpretar Galileu, o cientista que provou que a Terra girava em torno do Sol (e não o contrário), mas que foi obrigado a negar sua teoria heliocentrista para não ser morto na fogueira pela Inquisição.

– Quando eu li essa peça, fiquei muito inquieta. Não era um papel óbvio para mim, mas eu queria muito falar aquilo que o texto dizia. Queria muito dizer o que essa peça diz. Quando propus para a Cibele e ela topou, pensei: “bom, não estou tão louca assim”. A gente está em turnê sempre lotando os teatros. Brecht é muito popular. Ele usa ingredientes quase de folhetim nas histórias. Captura o público com entretenimento, um espetáculo sedutor, cheio de ironia, com timing cômico. Escreve para as pessoas se divertirem, ao mesmo tempo que conduz para uma reflexão que queria. Ele abre o pensamento para vários questionamentos.

Fala assim, apaixonada. A carreira da artista é cheia de sucessos, mas Brecht que a fisgou. No teatro, Denise já fez Samuel Beckett (“Esperando Godot”) e William Shakespeare (“Ricardo III”), e foi dirigida por Elias Andreato (“3 Versões da Vida”), Jô Soares (“Ricardo III”), Fauzi Arap (“Chorinho”) e pelo marido Luiz Villaça (“Sem Pensar”). Só com a comédia “Trair e Coçar É Só Começar”, ficou em cartaz por seis anos, com 1.600 apresentações. No cinema, recebeu sete prêmios pelo filme “Por Trás do Pano”, incluindo o Kikito em 1999; atuou em “O Auto da Compadecida” (de Guel Arraes em 2001); e neste ano estreou outra parceria com o marido, “De Onde Eu Te Vejo”. Mas é no teatro que vem emendando projetos. Desde 2006, não passa um ano sequer sem subir no palco. Sua peça mais premiada? “A Alma Boa de Setsuan”, que foi vista por 220 mil espectadores e lhe rendeu cinco troféus, entre eles o APCA e o Qualidade Brasil. De quem é a peça? De Brecht.

Tem lugares que lotam porque é de graça, e lugares que não. O que eu sinto é que são as duas coisas juntas, mas é muito mais a coisa do hábito, porque as pessoas têm a distância do teatro, o preconceito.

Você tem feito turnê com “Galileu Galilei” rodando o Brasil. O que tem percebido pelas cidades pelas quais passou?
DENISE FRAGASinto que essa balela de que o público não quer pensar está caindo por terra. É mentira. O público quer pensar sim. Se isso é feito com humor e ironia, então… O público fica feliz de ver um espetáculo no qual ele se diverte e, ao mesmo tempo, leva para casa uma cabeça inquieta, reflexões. Eu falo “vai, que você vai chegar diferente no escritório na segunda-feira”. Acho que é verdade. Se você puder, dá uma entradinha na nossa página no Facebook, porque tem os comentários das pessoas. A peça toca muito. A peça tem um poder muito grande de mexer com as pessoas. Acho que o Brecht chama, principalmente nessa peça, para você se resgatar e estar em dia minimamente com você mesmo. Ele pegou essa história, desse homem que nega a verdade para não ir para a fogueira… Porque era óbvio, ele podia provar: com o telescópio na mão ele provava. Ele achou que isso bastava e viu que não. A verdade é a que interessa submetida aos poderes vigentes. Ele pega essa história e amplia para os lados essa reflexão. Acho que somos todos Galileus. Todos nós temos que negar o óbvio, coisas que são completamente verdade, mas a gente faz cara de paisagem para absurdos, em nome de não perder o emprego, da promoção que precisa, em nome de ficar bem com seu chefe. A gente inventou viver em uma sociedade que se pauta pelo que rende. A gente acaba justificando tudo por dinheiro. Mas aí vem o Brecht e faz com que a gente se identifique com isso, escrevendo um personagem completamente humano, falível, um Galileu cheio de paixões, um homem cheio de defeitos, que gosta de comer bem, que às vezes esbarra na linha ética, machista. Ao mesmo tempo que a gente se identifica com esse cientista, sendo tão humano, falível, ele faz a gente pensar: até onde a gente cede para não se perder de si?

A arte é uma necessidade de espelho para a humanidade se reconhecer e se entender. O que eu falo do hábito é que a gente não tem essa conexão com a arte como fundamental para a formação do indivíduo…

Sobre essa questão de negar a verdade para não ir para a fogueira em paralelo com as nossas concessões cotidianas, te pergunto: que concessões você já fez na sua carreira?
DN - Ah, no início de carreira, todos nós fazemos concessões – coisas que você não acredita, sei lá… Eu, na verdade, vou te falar, acho que tive uma sorte muito grande, porque eu fiz poucas concessões na minha carreira. Fazer essa peça, de alguma maneira, é escrever minha cópia escondida nos “restos de luz das noites claras”. Vou te explicar. O Galileu, quando está na prisão domiciliar, depois de ter negado, escreve os “Discorsi”, que é a obra mais importante que ele deixou para a ciência. Ele dava uma cópia para a Inquisição e escrevia outra escondido, que conseguiu que fosse publicada na Holanda. O Brecht escreve isso na peça fazendo com que ele receba a visita do André, seu discípulo, que fica muito decepcionado com ele quando ele nega… Fica anos sem vê-lo… Aí ele recebe a visita do André, uma das cenas mais lindas da peça, e Galileu diz sobre a cópia escondida: “pus em risco os últimos e míseros restos do meu conforto para fazer uma cópia escondida usando os restos de luz das noites claras”. E ele estava quase cego. Eu fico pensando: ele mesmo tendo negado, e não tendo resistido, feito a concessão, não conseguiu deixar de ser Galileu. Ele escreveu. Brecht abre muitas camadas. Com isso, ele faz a gente pensar: que brecha a gente pode achar, mesmo servindo às estruturas de poder que a gente serve, mesmo vivendo nessa sociedade onde vale o que é rentável, o que você ainda pode achar de brecha para continuar em dia consigo mesmo? Para estar minimamente em dia com seus ideais, para conseguir olhar no espelho com 70 anos e falar “eu ainda tô aí, ainda sou aquela”. Eu, graças a Deus, não tive que fazer muitas concessões na minha carreira. Cuidei para estar conectada e achar caminhos, porque não é fácil achar caminhos. Também tive sorte de conseguir fazer coisas que eu acreditava muito, projetos pessoais, coisas que eu queria dizer. Minhas últimas escolhas no teatro são nesse sentido. Eu leio uma coisa que é como uma fofoca que eu preciso contar, um negócio que me dá um frisson, que preciso propagar. Aí eu vou à luta para conseguir o patrocínio. O Bradesco, desde o “Alma Boa”, é nosso parceiro, muito correto, sabe? Quando quis montar o “Galileu”, fui lá com os olhos brilhantes e eles nos deram o patrocínio. É muito legal você ver agora o público no saguão do teatro me falando frases que são as mesmas que eu falava para convencer o patrocinador. Por isso que falo que fazer essa peça é meu jeito de escrever no resto de luz das noites claras.

A arte ajuda o indivíduo a estar mais preparado para a vida, entender seus dramas. Eu sempre digo isso: quem lê Dostoiévski e Fernando Pessoa, no mínimo, vai sofrer mais bonito. A arte não nos livra dos dramas, mas nos aparelha para entender a imperfeição humana.

Quando você levou a peça para Brasília, falou ao Correio Braziliense que a falta de contato com a arte é uma questão de hábito, e não de acesso econômico. Você não acha que as duas coisas estão interligadas?
DN - A gente fez várias apresentações gratuitas com o “Galileu Galilei”, tanto nos CEUS [Centro de Artes e Esportes Unificados] quanto no Circuito Cultural Paulista, que é um projeto do governo do estado para levar teatro para cidades que quase nunca recebem peças. A gente também fez agora o circuito de bairros em São Paulo, com tudo de graça. Eu vejo que, nessa peça, tem lugares e lugares. Tem lugares que lotam porque é de graça, e lugares que não. O que eu sinto é que são as duas coisas juntas, mas é muito mais a coisa do hábito, porque as pessoas têm a distância do teatro, o preconceito. Aconteceu uma coisa que acho muito emblemática nessa temporada: a faxineira de uma das atrizes foi ver a peça e falou uma frase que é muito simples, mas exemplifica tudo. Ela falou “nossa, eu achei que teatro era um lugar que você ia e tinha um monte de gente lá falando coisa que você não entendia. Não é! Pode me chamar que eu venho toda vez agora”. As pessoas mais simples têm uma ideia de que teatro é uma coisa difícil, perfumada, que você tem que ter uma roupa especial. Uma coisa que eu acho linda é que 60% do nosso público não sabe quem é o Brecht. A gente fez para todas as idades. No [Teatro] Tuca, iam as famílias inteiras, com crianças, de classe A à D, e você vê a peça tocar, reverberar. Mas a gente vive em um país que tem essa cultura de que a arte é algo supérfluo e não uma necessidade. Em qualquer povo da humanidade, nos povos mais primitivos da humanidade, tem arte. Eu fui uma vez ao Museu de Antropologia do México, onde você tem um panorama dos povos primitivos, e sempre a manifestação artística existe. A arte é uma necessidade de espelho para a humanidade se reconhecer e se entender. O que eu falo do hábito é que a gente não tem essa conexão com a arte como fundamental para a formação do indivíduo…

É disseminada uma cultura onde o cara é desenvolvido quanto mais dinheiro ele tem. Olha nossa elite! É triste de ver! Nossa elite tem piscina, vários carros na garagem, e tem gente que nunca foi a uma peça de teatro ou leu quatro livros na vida. Se leu, leu obrigado pela escola. Se fosse mesmo uma questão de dinheiro e não de hábito, os teatros estavam todos lotados, porque a gente tem muita gente que pode pagar por isso, mas que não são treinados para tal. Muitas vezes, simplesmente desconhecem.

Desculpa interromper, mas, por exemplo, vocês vão fazer a temporada no Teatro João Caetano, na Praça Tiradentes, no centro trabalhador da cidade. O ingresso custa R$ 30, que é barato, porque a meia é R$ 15. Mas o quilo do feijão também está em torno disso, então o preço já exclui grande parte dos trabalhadores. Que balanço você faz disso?
DN - Sim, mas sabe o que eu acho? Que eles não deixam de ir ao teatro para comprar feijão. Deixam de ir para comprar tênis, entendeu? Tudo bem, agora podem estar deixando de comprar feijão, porque todo mundo empobreceu muito. A gente está vivendo uma grande crise e esse ingresso parece caro já.
É isso que eu quis dizer.
DN - Mas o que eu sinto é que a gente prioriza o indivíduo que é desenvolvido quanto mais ele consegue adquirir, e não saber. A gente pauta a sociedade desenvolvida por aquela que tem carro, que compra tênis importado, e não aquele que agora vai conseguir comprar o seu ingresso, o seu livro. Você pega duas pessoas que tem ensino fundamental, que não passaram do 5º ano: o A vai ao teatro, ao cinema, lê, e o B não. O A é completamente uma pessoa mais preparada que o outro. A arte forma. A arte ajuda o indivíduo a estar mais preparado para a vida, entender seus dramas. Eu sempre digo isso: quem lê Dostoiévski e Fernando Pessoa, no mínimo, vai sofrer mais bonito. A arte não nos livra dos dramas, mas nos aparelha para entender a imperfeição humana. Uma pessoa que tem o código poético, que consegue estar em contato com a arte e absorvê-la, é mais preparada para a vida. E isso não é dado nas escolas, não é dado como cultura no nosso país. O culto à cultura, o culto à arte. Você entender que a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte. A gente não quer só dinheiro, a gente quer dinheiro e felicidade. Não estamos aqui para citar os Titãs (risos), mas é uma coisa de compreender… As pessoas reclamam muito do preço do ingresso. Eu queria muito fazer teatro de graça, sabe? Acho mesmo que facilitaria você pegar o cara pela mão e falar “vem aqui”… Na verdade, eu não queria fazer de graça. Queria fazer a R$ 2, porque queria que a pessoa entendesse que existe uma coisa pra comprar que vai te dar um reino de felicidade. Não só um reino de felicidade: você vai construir de tijolo em tijolo. Cada tijolo é um livro, uma peça, um filme que você veja. Você vai construir um arsenal para conseguir enfrentar a vida. Você consegue viver melhor através da arte, e isso não é disseminado. É disseminada uma cultura onde o cara é desenvolvido quanto mais dinheiro ele tem. Olha nossa elite! É triste de ver! Nossa elite tem piscina, vários carros na garagem, e tem gente que nunca foi a uma peça de teatro ou leu quatro livros na vida. Se leu, leu obrigado pela escola. Se fosse mesmo uma questão de dinheiro e não de hábito, os teatros estavam todos lotados, porque a gente tem muita gente que pode pagar por isso, mas que não são treinados para tal. Muitas vezes, simplesmente desconhecem. Nunca foram levados pela mão. A gente recebeu agora uma mensagem de um cara que foi assistir em Curitiba e é a coisa mais incrível. Quer ver? Eu até te leio. Está aqui no meu celular. Pera aí. *procura* “Denise, vocês arrasaram aqui em Curitiba. Muito bom mesmo! Foi a primeira vez que participei de uma apresentação de peça de teatro e fiquei imensamente inquieto para o consumo da arte. De fato, estamos em uma aridez de ideais e você e todo o pessoal estão lá para resgatar aquilo que infelizmente se desgastou em nós: a capacidade de sonhar, de extrair prazer da vida. Em minha vida, de fato, tenho que fazer muitas caras de paisagem e escolher não acreditar naquilo que é óbvio, não querer crer em meus próprios olhos. Tudo isso para não cair em uma certa Inquisição, para não ser banido de um sistema no qual estou integrado há muito tempo. Enfim, minha gratidão a vocês todos. Jamais esquecerei o que vivi aquela noite”. Não é incrível? Uma pessoa que nunca tinha ido a teatro!

(foto da matéria original)

A lei de incentivo existe em qualquer país civilizado do mundo. A gente não está falando de um privilégio nosso no país da falcatrua.

Imagino como é para você.
DN - Eu tenho recebido cada coisa por causa dessa peça! Estou muito animada. Se deixar eu fico aqui falando empolgada. Eu estou muito empolgada mesmo com o que está acontecendo. Vejo que o buraco é mais embaixo. Tem uma hora na peça que o Brecht põe na boca do Galileu a seguinte frase: “eu queria ficar embaixo da terra, onde não entrasse mais luz, só para saber o que é a luz. E o pior: o que eu sei, preciso passar adiante, como um enamorado, um bêbado, um traidor”. Essa coisa de passar adiante, essa coisa que o Galileu tinha, que o Brecht tem, de querer passar para muitos… Não é à toa que ele escreveu três versões dessa peça, que é a única biografia que ele fez. Ele era completamente obcecado pelo Galileu, pelo personagem, porque se identificava profundamente, e eu tenho essa identificação com os dois, com essa coisa de querer passar adiante. Li esse texto e me inquietei, fiquei doida. Eu tinha outros projetos, mas falar esse Galileu era mais urgente e é uma coisa que está me tomando de um jeito… Para você ter uma ideia, eu vejo uma reação nessa peça que nunca tinha visto. O cenário, que é muito bonito, tem uma arena pendente que lança a gente no meio da plateia. Eu passo a maior parte da peça ali nessa arena, então vejo muito a cara da plateia. Em algumas falas, vejo cabeças balançarem, dizendo “sim” com a cabeça, em um gesto inconsciente, de concordar com o texto. É bonito demais, porque você vê que a pessoa está completamente tomada pela ideia. São 2h20 de espetáculo, às vezes 2h15, e ninguém sai, ninguém dorme. Todo mundo de boca aberta. É lindo de ver. Fico vendo que minha ideia não era tão maluca assim. Fico feliz.
Em contrapartida, a gente tem vivido um retorno à marginalização da figura do artista, que tem até a ver com o que você diz de falta do culto à arte. Com a crise política, as distorções sobre a Lei Rouanet, e a polifonia na Internet, de repente vimos os artistas sendo chamados massivamente de “vagabundos”. Como você se coloca diante desse panorama?
DN - Ai, gente, é muita desinformação, né? Eu acho que as pessoas que falam da Lei Rouanet não estão informadas, não viram. Tem tudo no Diário Oficial. Faz a conta. Eu convido as pessoas a fazerem a conta. Na verdade, qualquer país desenvolvido do mundo tem sua arte subsidiada, amparada pelo governo, porque a arte não se paga em si. Sem o pontapé inicial dado pelo patrocínio, tendo que pagar os mínimos aos teatros, a divulgação e a produção inicial, já quebra uma peça. Você não recupera isso em bilheteria. Para fazer uma peça desse tamanho… Eu acho que talvez você precise rever vários pontos da Lei Rouanet, mas não é para questionar essa lei que trouxe uma efervescência cultural desde então. A lei de incentivo existe em qualquer país civilizado do mundo. A gente não está falando de um privilégio nosso no país da falcatrua. O que é isso?! É uma falta de informação. Eu me sinto ofendida. O que é isso?! Eu trabalho pra caramba!
O Aderbal Freire-Filho está até processando umas pessoas.
DN - É absurdo o que as pessoas falam. A Internet é muito covarde. Fala isso aqui na minha cara. Vem no teatro me falar isso, que vou te mostrar as contas, entendeu?
Você acompanha essas discussões na Internet? Dá atenção a isso?
DN - Eu não dou atenção, porque a Internet me suga a alma. Agora tenho uma página no Facebook e no Instagram basicamente para divulgar a turnê da peça. Vi que realmente era importante ter isso para divulgação do “Galileu” por aí. As pessoas estão muito ligadas na Internet e é uma força muito grande de comunicação. Mas eu não vou ficar o dia inteiro fazendo esse desfile de opiniões e pouco fato. É muita opinião para pouco fato. Me conta uma história! Me dá uma história, que aí eu construo minha vivência a partir da sua história. Não importa a opinião do outro sem a vivência, então é muita opinião. “Olha o que eu acho”. “Olha o que postei”. “Olha o que eu disse”. A maioria dessas coisas de “olha o que eu disse”, não diria na cara do sujeito. Ah, me poupe! (risos) É muito triste o que a gente está vivendo. Nesse desaviso, umas vão se linkando às outras e vai virando um mar de radicalismos e imbecilidade. É muito triste, porque não tem fundamento. Quando leio essas discussões, a primeira frase que vem à minha cabeça é: “gente, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”. Você quer discutir sobre o assunto e não te deixam. Qualquer coisa que você fale significa um lado ou significa o outro. Olha esse Fla x Flu ridículo que a gente viveu aí, que você não pode falar nem isso nem aquilo, porque senão está de um lado ou de outro. É muito triste o que a gente viveu agora, porque é um acinte à nossa inteligência e à nossa capacidade de ponderar, de sensatez, de falar “eu acho isso, mas também acho aquilo, que talvez seja uma parte que eu discorde…”. Não, você tem que colocar seu pensamento em caixinhas.

Eu adoro a comédia, adoro a comédia da ideia, de usar o humor como agente poderoso de reflexão. Você comunica o que quiser com humor e ironia. Não tem limite pra isso.

Até o Brecht traz uma discussão sobre os meios de produção, sobre o ator mostrar que está atuando, um teatro menos adepto da ilusão, que eu acho que tem tudo a ver o Galileu ser interpretado por uma mulher nesse sentido…
DN - É! É muito brechtiano, na verdade! Um dos argumentos que me convenceram foi esse: é muito brechtiano uma mulher fazendo o Galileu. É engraçado, porque, na época que eu decidi fazer, nem estava tão em voga essa questão de gênero, e hoje ainda tem um plus porque é uma mulher fazendo um homem falando sobre o quanto concedemos, né?
Mas o que eu ia perguntar é o que te instiga a apresentar esse espetáculo nesse momento político brasileiro. Eu vi que vocês foram até para Brasília.
DN - Nossa, foi incrível! (risos) A gente chegou a Brasília e estavam todas as sessões esgotadas. A primeira vez que a gente abriu sessão extra foi lá. É incrível. A peça sempre será atual. Ela é atual em qualquer época que for montada. Mas agora ela parece uma peça encomendada, parece que a gente ensaiou às pressas. Eu fico feliz de estar podendo falar, ter essa voz nesse momento, mas ao mesmo tempo muito triste por ver cada vez mais os acontecimentos criarem uma força cada vez maior para a peça. É irônico, porque estou feliz de fazer a peça, mas triste por ver que cada vez ela fica mais propícia. O que a gente viu acontecer e você falar desse cara que vai vendendo a alma… As justificativas todas, os jogos políticos… Quando você lê as biografias do Galileu, você vê que foi mesmo uma questão política. Ele só não foi para a fogueira porque tinha muitos conhecidos no Vaticano, no poder, e foi poupado. Foi convidado a negar publicamente e o mantiveram em uma prisão domiciliar.

Quando você faz muita comédia, você fica com o ouvido doutrinado, treinado, porque é quase como música: a risada não é sempre a mesma. A risada tem várias nuances.

Brecht também faz questão que o teatro político, engajado, seja divertido. Analisando sua carreira, essa é uma busca sua como artista também, né?
DN - Eu acho que talvez por isso eu me identifique tanto com ele. Mesmo no “Retrato Falado”, a gente fazia muitas coisas que ali dentro tinha algo para reflexão. Eu adoro a comédia, adoro a comédia da ideia, de usar o humor como agente poderoso de reflexão. Você comunica o que quiser com humor e ironia. Não tem limite pra isso. Ao contrário do que muita gente pensa, que é para você “aliviar”, eu não sinto que alivie. O humor confirma que aquilo passou pela inteligência do sujeito. A comédia é completamente aliada à inteligência: você só ri daquilo que você compreende. Quem não entende a piada não ri. A comédia recruta a inteligência. Estou falando da comédia de texto, né? Nunca gostei de fazer as gracinhas de forma. Aliás, eu tiro essas gracinhas de forma, porque às vezes atrapalham a clareza do texto.
O que seria uma gracinha de forma, por exemplo?
DN - As pessoas rirem do jeito que você está falando, e não daquilo que está falando.
Entendi.
DN - Quando você consegue que a plateia ria por uma coisa seríssima que você está falando, mas de uma maneira cômica, você está assegurando que aquela ideia foi capturada.
E às vezes tem até aquele riso culpado, né?
DN - Você sabe que tem uma risada que eu chamo de risada “pior que é”. Que é uma risada que vem toda hora. É uma risada que é meio interrompida. Quando você faz muita comédia, você fica com o ouvido doutrinado, treinado, porque é quase como música: a risada não é sempre a mesma. A risada tem várias nuances. É uma espécie de voz. Quando você escuta essa risada “pior que é”, a pessoa ri e pensa “pior que é, a gente faz isso mesmo”.
Para mim, é “risada culpada”.
DN - É, uma risada de identificação e culpa! (risos)
Nos últimos anos, com uma conscientização maior das políticas de minorias, tem crescido uma discussão sobre limites do humor e sobre o politicamente correto. Quais as suas considerações sobre esse debate?
DN - Eu acho que o limite do humor é a delicadeza, né? Eu adoro o que é engraçado, mas adoro a gentileza também. Só que, por essa coisa da Internet que estávamos falando, às vezes a gente está entre amigos, com colegas, e alguns são polícias de vírgula. As pessoas estão policiando vírgula. Se você usa uma palavra ou outra, a pessoa fala “ah, não…”. E você diz “mas não foi isso que eu quis dizer…”. A gente vai perdendo a sensatez em meio a um mar de radicalismos. Eu acho que a gente ainda tem muito a caminhar, mas deu passos muito grandes, com relação ao negro, por exemplo, que a gente tem que se policiar. Acho mesmo que tem que policiar sua avó falando (risos). Você tem que ir atrás disso. Eu fico muito feliz dos meus filhos hoje verem os casais gays de mãos dadas e abraçados, sabe? E não ficarem apontando. Nunca fizeram isso. É a coisa mais normal do mundo você ver os casais abraçados, se beijando. Eu acho que isso é um ganho enorme que a gente teve. Mas tem que ter cuidado para não virar polícia de vírgula, porque a gente se meteu em lugares radicais que tiram a nossa sensatez, que tiram nossa capacidade de ponderar e contextualizar as coisas.
Brecht propõe o teatro didático, de aprendizagem. O que você tem aprendido fazendo essa peça?
DN - Esses nomes acadêmicos para o Brecht – teatro didático, teatro épico, o distanciamento – me fazem pensar que ele ficaria muito bravo com tanta teorização em cima do teatro! (risos) Ele com certeza fez um teatro que mudou o teatro no mundo, mudou o mundo. Ele é um poeta e dramaturgo de muita importância. Mas sinto que o que ele propõe, na forma como escreve, esse teatro épico, do teatro que narra, o ator em cena que narra, faz a gente aprender sobre a profissão de uma maneira muito bonita: o que é o intérprete, você ser filtro de um autor, e se apoderar das palavras dele, pegar aquilo para você em cena. Ele tem um poema muito bonito que fala: “você, artista, que quer ser o cara que cria ilusão, saiba ao mesmo tempo sobre a cena que faz e sobre o que é essa cena no mundo que você habita”. É o tempo inteiro entender que você é um sacerdote desse negócio chamado teatro e você está ali para dizer coisas também. Talvez venha daí essa identificação tão grande que eu sinta com ele.
O fato da Terra não ser o centro do universo, do sol não girar em torno do ser humano, é uma mudança de perspectiva muito grande. Faço um link com a cultura de celebridades. É muito fácil uma pessoa famosa ter suas egotrips e se sentir o centro de tudo, porque as pessoas ao redor a tratam como se fosse. Eu não te conheço, mas o que a gente sempre ouve sobre Denise Fraga é que você é muito pé no chão, simples e trata todo mundo de igual para igual. Tem algum esforço para não se deixar levar pela megalomania? Esse culto a celebridade nunca mexeu com você?
DN - Na verdade, isso nunca me seduziu muito. O que me seduziu sempre foi esse negócio do teatro como tribuna mesmo, o lugar onde você conta histórias, fala coisas, diverte as pessoas. Desde o início. Aí veio a televisão… Eu achava que nem podia ser atriz. Fazia teatro meio por hobby. Meu último professor no curso foi o Cláudio Correa e Castro [1928-2005] e ele falava “você tem que se profissionalizar”. Eu achava que não era pra mim. Eu me tornei atriz, mas continuo reles mortal, como era, que achava que não podia ser atriz. (risos) Nunca deixei de sair na rua por causa das pessoas… Existe um assédio, mas não é nada impossível de lidar. Acho que, para um galã, é difícil mesmo. Mas o que quero dizer é que não foi um esforço. Sou muito seduzida pela minha profissão e agradeço todo dia. Agradeço mesmo. Às vezes quando estou em cena, falando o texto, penso “gente, que felicidade a pessoa poder ser isso na vida e ainda pagar as contas com isso!”. Eu tenho uma coisa que foi indo assim, até por isso eu seja tão conectada com o teatro que quero fazer e o jeito que quis levar minha carreira.
Você fará uma participação na próxima novela das 21h da Globo. Pesquisei e vi que você não faz novela há 16 anos! A última foi “Uga Uga”!
DN - Contam 16 anos porque eu fiz o primeiro capítulo de “Uga Uga”, mas na verdade são 20 anos já! (risos) A última foi no SBT – novela, novela mesmo, de ficar oito meses na novela. Eu fiz quatro novelas só na vida: duas na Globo e duas no SBT.
Relembre como era o “Retrato Falado”:
Por quê? Não te interessa o formato da novela?
DN - Eu fiquei nove anos no “Retrato Falado” no “Fantástico”, onde não fiz só o “Retrato Falado”. A gente fez outras dramaturgias dentro daqueles dez minutos: “Dias de Glória”, “Copas de Mel”, “Fazendo História”, “Te Quero, América”… Aquilo durou nove anos. Gravava em São Paulo, com uma equipe reduzida, em locação, na rua, com uma câmera só. Eu recebi alguns convites para novela na época, mas não podia desmantelar a equipe do “Retrato Falado”, que só existia ali em São Paulo, para parar e fazer uma novela. Era uma equipe tão azeitadinha, em um programa que eu adorava fazer. Mas não tenho essa coisa de “ah, não quero fazer novela”. Eu gostaria. Um personagem bacana: claro que gostaria de fazer. O que aconteceu é que, quando tive outros convites, sempre estava com projetos de teatro. Eu meio que venho emendando um projeto no outro. Eu tenho projetos! (risos) O problema é que eu tenho projetos. O problema não é um problema! Quando recebo o convite, às vezes não calhou de dar para desfazer ou ser em uma hora em que caberia na agenda. Agora deu certo porque é uma participação, só os primeiros três capítulos, então dava para fazer apesar de estar em turnê. É um personagem que tem poucos cenários, então dava para fazer.
O problema para você, então, é o tempo de duração da novela, né? Oito meses de dedicação.
DN - Não, não. Na verdade, se eu me programasse, dava. Se eu tivesse um convite com mais antecedência… Agora parece que as pessoas até estão se programando com mais antecedência. Não é pelo tempo. É que faço outras coisas. Não fico lá na minha casa esperando o convite da televisão tocar, entendeu? Quando você é produtora dos seus projetos, é muito difícil você parar. Quando você é produtora de si mesma, você é um patrão muito carrasco. Você não se deixa parar. Na medida que você é capaz de levantar o seu projeto, a sua produção, você não para nunca, porque você quer levantar as suas coisas. Mas eu adoro quando aparece um convite. Às vezes as pessoas têm uma ideia errada. Nos últimos trabalhos que fiz de cinema e televisão, escutei umas coisas assim: “que bom que você topou, eu achei que você só fazia seus projetos”. Nããããão! (risos) Eu adoro um convite. Dando para fazer, eu vou fazer.
Estava lendo uma entrevista antiga sua para a revista Marie Claire, de 2003…
DN - Nossa!
Pois é. Na época, você estava no “Retrato Falado” e falou que a TV ainda não tinha te possibilitado fazer “um pé de meia”. O senso comum é de que a TV é o veículo mais rentável para os atores, mas você vem conseguindo viver e criar seus filhos à parte disso…
DN - Mas eu fiquei muitos anos contratada da televisão. Fui contratada da TV Globo 18 anos e tudo que consegui construir, da minha casa e tal, sem dúvida nenhuma devo a essa minha vida da TV Globo. Consegui economizar dinheiro fazendo televisão, mas sempre junto do teatro. O teatro sempre me deu muito menos dinheiro que a televisão.
Isso que quero perguntar: é possível viver de teatro?
DN - Possível, é. Mas, quando você tem o parâmetro de dinheiro da televisão, você fica achando aquele dinheiro pouco. O que acho é que você tem que saber que existem outras riquezas. É o que a gente estava falando. Qual é o seu patrimônio? Sempre falo para os meus colegas: “quando você começa a ver que o grande problema é a cor do vidrotil da piscina, é melhor você se antenar, porque talvez sua alma de artista esteja se deteriorando”. Quando o grande problema é administrar o dinheiro… A televisão paga bem, mas as pessoas têm uma ideia muito errada de que somos todos ricos. Não é verdade. A gente não pode parar de trabalhar. A televisão paga melhor, paga um bom salário, mas não é isso… Às vezes fico pensando: imagine se a gente morasse nos Estados Unidos, ou na Venezuela que fosse… (risos) A Venezuela nem dá para falar, porque não é mais aquela produtora de novela que era. Mas, na Argentina, os atores ganham muito mais do que a gente. Em qualquer lugar.
Ah, é? Na Argentina, ganha mais?
DN - Na Argentina, ganha mais. Dá de cara. Talvez os grandes salários da TV Globo… Não sei, porque não sei o quanto as pessoas ganham. (risos) Mas não é assim como as pessoas acham. As pessoas têm uma ideia muito fictícia do que a gente ganha.
Você falou sobre a “alma de artista”. Para terminar, na sua opinião, o que diferencia uma atriz de uma artista?

DN - Alma de artista é um negócio que alguns engenheiros têm. Alma de artista é você conseguir perceber a vida enquanto ela passa, ter um olho para a própria existência, como se olhasse de camarote a vida. Você tem a capacidade de percepção, de assistir à vida. Por isso, muitos atores têm alma de artista. Alguns atores não têm. (risos) E alguns engenheiros têm. São pessoas que têm alma de artista e seguiram outra profissão. Às vezes vão ao teatro e, mesmo quando se trata de uma comédia, choram de emoção de se conectar com aquilo que seria uma coisa onde os canais deles estariam abertos em conexão com uma coisa muito maior. Eu acho que entender-se como artista é uma coisa parecida… Outro dia me perguntaram “Denise, você acha que todo artista tem que ser engajado?”. Eu falei que todo médico tem que ser engajado, todo jornalista tem que ser engajado. Engajado, se você for ver o valor dessa palavra, é você entender que faz parte de um todo, que a história é feita por nós. Brecht é rei de fazer você se lembrar disso, de que nós somos os responsáveis pelo curso da história. Isso é estar engajado. É fazer parte de um coletivo, de um todo. Eu sou engajado no todo. Nisso, todos nós deveríamos estar.

(foto da matéria original)