quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

O TEATRO DA MORTE

Nesta semana o nosso blog reproduz um artigo publicado em 2002 (v.2), na Revista Sala Preta, da USP. - http://www.revistas.usp.br/salapreta

O artigo é sobre Tadeusz Kantor, (1915-1990). Encenador e artista plástico polonês.
Ensaio escrito em 1975, por ocasião da estréia do espetáculo A Classe Morta em Varsóvia. A versão francesa do texto, base desta tradução, foi publicada no livro Le Théâtre de la mort, organizado e apresentado por Denis Bablet e editado pela l’Âge d’homme de Lausanne em 1977.
Tradução de Silvia Fernandes.

Boa leitura e boas festas!

Sílvia Fernandes -  foto no site do MITSP/2014

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O teatro da morte

Tadeusz Kantor

1 Craig afirma: a marionete deve retornar; o ator vivo deve desaparecer. O homem, criado pela natureza, é uma interferência estranha na estrutura abstrata da obra de arte.

Segundo Gordon Craig, em algum lugar entre os rios de Ganges, duas mulheres entraram no templo da Divina Marionete, que guardava o segredo do verdadeiro Teatro. Essas duas mulheres tinham ciúmes desse Ser perfeito, de quem invejavam o Papel de iluminar o espírito dos homens com o sentimento sagrado da existência de Deus; elas invejavam-lhe a Glória.
Apossaram-se de seus movimentos e gestos, de suas vestes maravilhosas e, com uma paródia medíocre, começaram a satisfazer o gosto vulgar da plebe. Quando, enfim, mandaram construir um templo à imagem do outro, o teatro moderno nasceu – aquele que conhecemos muito bem e que dura até hoje: essa barulhenta Instituição de utilidade pública. Ao mesmo tempo, apareceu o Ator. Em apoio à sua tese, Craig invoca a opinião de Eleonora Duse: “Para salvar o teatro, é preciso destruí-lo; é preciso que todos os atores e todas as atrizes morram de peste... São eles que criam obstáculos à arte...”

Gordon Craig - foto do blog:
Dramatic Corporeal Mime Technique Studio


2. A Teoria de Craig: o homem-ator suplanta a marionete e toma seu lugar, causando, assim, o declínio do teatro.

Há algo de impositivo na atitude desse grande utopista, quando afirma: “Eu exijo, seriamente, o retorno do conceito da supermarionete ao teatro... E desde que ela reapareça, as pessoas poderão venerar de novo a alegria da existência e render uma homenagem divina e alegre à Morte.”
Concordando com a estética simbolista, Craig considerava o homem submetido a paixões diversas, a emoções incontroláveis e, em consequência, ao acaso, um elemento absolutamente estrangeiro à natureza homogênea e à estrutura de uma obra de arte, um elemento destruidor de seu caráter fundamental: a coesão. Craig – como os simbolistas, cujo programa tem um desenvolvimento notável em seu tempo – tinha atrás de si fenômenos isolados, mas extraordinários, que no século XIX anunciavam uma época nova e uma arte nova: Henrich von Kleist, Ernst Theodor Hoffmann, Edgar Allan Poe...
Cem anos antes, e por razões idênticas às de Craig, Kleist exigiu que o ator fosse substituído por uma marionete, julgando que o organismo humano, submetido às leis da Natureza, fosse uma interferência estranha na ficção artística, nascida de uma construção do intelecto. As outras censuras de Kleist dirigiam-se às limitadas possibilidades físicas do homem; ele denunciava, além disso, o papel nefasto do controle permanente da consciência, incompatível com os conceitos de charme e beleza.

3. Da mística romântica dos manequins e das criações artificiais do homem do século XIX ao racionalismo abstrato do XX.

No caminho que se julgava seguro, e de que se servia o homem do Século das luzes e do racionalismo, eis que avançam, saindo de repente das trevas, cada vez mais numerosos, os SÓSIAS, os MANEQUINS, os AUTÔMATOS, os HOMÚNCULOS – criaturas artificiais que são injúrias às próprias criações da NATUREZA e trazem em si toda a humilhação, TODOS os sonhos da humanidade, a morte, o horror e o terror. Assiste-se ao aparecimento da fé nas forças misteriosas do MOVIMENTO MECÂNICO, ao nascimento da paixão maníaca de inventar um Mecanismo que supere em perfeição, em implacabilidade, o tão vulnerável mecanismo humano. E tudo isso num clima de satanismo, no limite do charlatanismo, das práticas ilegais, da magia, do crime, do pesadelo. É a FICÇÃO-CIENTÍFICA da época, em que um cérebro humano demoníaco cria o HOMEM ARTIFICIAL. Isso significa, ao mesmo tempo, uma súbita crise de confiança em relação à natureza e aos domínios de atividade humana intimamente ligados a ela.
Paradoxalmente, é dessas tentativas românticas e diabólicas ao extremo de negar à natureza seu direito à criação, que nasce e desenvolve-se o movimento RACIONALISTA, ou mesmo MATERIALISTA – cada vez mais independente e cada vez mais perigosamente afastado da Natureza –, a tendência na direção de um “MUNDO SEM OBJETO”, do CONSTRUTIVISMO, do FUNCIONALISMO, do MAQUINISMO, da ABSTRAÇÃO e, finalmente, do PURO-VISIBILISMO, que reconhece apenas a “presença física” de uma obra de arte. Essa hipótese arriscada, que tende a estabelecer a gênese pouco gloriosa do século do cientificismo e da técnica, mobiliza apenas minha consciência e serve apenas à minha satisfação pessoal.

4. O dadaísmo, introduzindo a “realidade toute prête” (os elementos da vida), destrói os conceitos de homogeneidade e de coerência da obra de arte postulados pelo simbolismo, pela Art Nouveau e por Craig.

Mas voltemos à supermarionete de Craig. Sua idéia de substituir um ator vivo por um manequim, por uma criação artificial e mecânica, em nome da perfeita conservação da homogeneidade e da coerência da obra de arte, já está ultrapassada. As experiências posteriores, que destruíram a homogeneidade da estrutura de uma obra de arte e introduziram nela elementos ESTRANGEIROS, por meio de colagens e assemblages; a aceitação da realidade “toute prête”; o pleno reconhecimento do papel do acaso; a localização da obra de arte na fronteira estreita entre REALIDADE DA VIDA e FICÇÃO ARTÍSTICA – tudo isso tornou prescindíveis os escrúpulos do início do século, do período do Simbolismo e da  Art Nouveau. A alternativa “arte autônoma, de estrutura cerebral, ou perigo de naturalismo” deixou de ser a única possível.
Se o teatro, em seus momentos de fraqueza, sucumbia ao organismo humano vivo e a suas leis, é porque aceitava, automaticamente e logicamente, essa forma de imitação da vida que sua representação e sua recriação constituem.
Ao contrário, nos momentos em que o teatro estava suficientemente forte e independente para se livrar das pressões da vida e do homem, produzia equivalentes artificiais da vida que, por se curvarem à abstração do espaço e do tempo, eram mais vivos e mais aptos a atingir a coesão absoluta. Em nossos dias, essa alternativa de escolha perdeu tanto seu sentido quanto seu caráter exclusivo. Pois se criou uma nova situação no domínio da arte e existem novos parâmetros de expressão.
O surgimento do conceito de REALIDADE “TOUTE PRÊTE”, arrancada do contexto da vida, tornou possíveis a ANEXAÇÃO dessa realidade, sua INTEGRAÇÃO à obra de arte pela DECISÃO, pelo GESTO ou pelo RITUAL. E isso, atualmente, é muito mais fascinante e tem mais poder no coração do real do que qualquer entidade abstrata ou elaborada artificialmente, ou mesmo do que esse mundo surrealista do “MARAVILHOSO” de André Breton. Happenings, “eventos” e “ambientações” reabilitaram, num ímpeto, regiões inteiras da Realidade menosprezadas até aqui, liberando-as das garras de sua destinação terra-a-terra. Esse DESLOCAMENTO da realidade pragmática, esse “transbordamento” fora dos trilhos da prática quotidiana, impeliram a imaginação dos homens de modo muito mais intenso que a realidade surrealista do sonho onírico.
Enfim, foi isso que fez com que perdessem toda importância os temores de ver o homem e sua vida interferirem diretamente no plano da arte.

5. Da “realidade imediata” do happening à desmaterialização dos elementos da obra de arte.

Entretanto, como toda fascinação, depois de certo tempo essa também se tornou CONVENÇÃO pura – universalmente, tolamente, vulgarmente colocada em prática. Essas manipulações quase rituais da realidade, ligadas à contestação do ESTADO DA ARTE e do LUGAR reservado à arte, pouco a pouco adquiriram um sentido e uma significação diferentes. A PRESENÇA material, física, dos objetos, e o TEMPO PRESENTE em que podem, sozinhos, figurar a atividade e a ação, aparentemente atingiram seus limites e se tornaram um entrave. Superá-los significava privar essas relações de sua Importância material e funcional, ou seja, de sua possível APREENSÃO.
(Como se trata aqui de um período recente, ainda não encerrado, fluido, as considerações que se seguem referem-se e estão ligadas a minhas próprias atividades de criação).
O objeto (A Cadeira, Oslo, 1970) tornava-se vazio, desprovido de expressão, de encadeamentos, de pontos de referência, de marcas de uma desejada intercomunicação, de uma mensagem; não era dirigido a lugar nenhum e se tornava artifício. As situações e as ações permaneciam fechadas em seu próprio CIRCUITO, ENIGMÁTICAS (O teatro impossível, 1973). Em minha manifestação intitulada Cabriolage, aconteceu uma INVASÃO ilegítima do território em que a realidade tangível encontra seus prolongamentos INVISÍVEIS. Cada vez mais distintamente especifica-se o papel do PENSAMENTO, da MEMÓRIA e do TEMPO.

6. Recusa da ortodoxia do conceptualismo e da “vanguarda oficial das massas”
.
De forma cada vez mais forte, impõe-se, para mim, a convicção de que o conceito de VIDA só pode ser reintroduzido na arte por meio da AUSÊNCIA DE VIDA no sentido convencional (ainda Craig e os simbolistas). Esse processo de DESMATERIALIZAÇÃO instalou-se em minhas atividades criativas, sem incluir, entretanto, toda a armadura ortodoxa da linguística e do conceptualismo. É certo que, em parte, essa escolha foi influenciada pelo engarrafamento gigantesco que entupiu essa via, de agora em diante oficial, que constitui, hélas, o último trecho da estrada dadaísta, sinalizada por seus slogans de ARTE TOTAL, TUDO É ARTE, TODO MUNDO É ARTISTA, A ARTE ESTÁ EM SUA CABEÇA, etc.
Não gosto de engarrafamentos. Em 1973 escrevi o esboço de um novo manifesto, que leva em conta essa situação falsa. Eis o seu início:

“Depois de Verdun, do Cabaré Voltaire e do Urinol de Marcel Duchamp, quando o ‘fato artístico’ foi encoberto pelo crescimento da Grosse Bertha, a DECISÃO tornou-se a única chance que restou ao homem de ousar algo inconcebível outrora ou ainda hoje. Por muito tempo, ela foi o primeiro estímulo à criação, uma condição e uma definição da arte. Mas nos últimos tempos, milhares de indivíduos medíocres tomam decisões, sem reticências nem escrúpulos de qualquer ordem. A decisão tornou-se uma questão banal e convencional. O que era um caminho perigoso, agora é uma estrada confortável – segurança e sinalização hipermelhoradas. Guias, sinais, placas indicativas, brasões, centros, congressos de arte – é isso que garante a criação artística perfeita. Somos testemunhas de um LEVANTE EM MASSA de comandos de artistas, de combatentes de rua, de artistas de choque, de fazedores de arte, de escrevinhadores, de caixeiros viajantes, de charlatões, de representantes de firmas e agências. Nessa estrada, agora oficial, o tráfego, que ameaça afogarnos sob uma onda de grafites insignificantes e pretensos golpes de teatro, aumenta cada dia mais. É preciso abandoná-la o mais rápido possível. Mas não é assim tão fácil! Especialmente porque ela está no apogeu – cega e afiançada pelo alto prestígio do INTELECTO, que inclui igualmente sábios e tolos – a ONIPRESENTE VANGUARDA....”

7. Nos caminhos marginais da vanguarda oficial. Os manequins aparecem.

Minha decidida recusa em aceitar as soluções do conceptualismo, ainda que pareçam a única saída para o caminho que escolhi, levou-me a tentar circunscrever os fatos relatados acima, que marcaram a última fase de minha atividade criadora por caminhos marginais, capazes de me oferecer mais oportunidades de desembocar no DESCONHECIDO!
Tal situação, mais que qualquer outra, me torna confiante. Todo período novo sempre começa por experiências sem grande significação, perceptíveis apenas em surdina, que não parecem ter muito em comum com a via traçada; experiências particulares, íntimas, até mesmo pouco recomendáveis, eu diria. Pouco claras, de qualquer forma. E difíceis! Esses são os momentos mais fascinantes e mais plenos de sentido da criação artística.
E, de repente, passei a me interessar pela natureza dos MANEQUINS. O manequim, em minha encenação de La Poule d’eau (A Galinha aquática), de Witkacy (1967) e os manequins em  Les Cordonniers (Os Sapateiros), do mesmo Witkacy (1970), tinham um papel muito específico; eram uma espécie de prolongamento imaterial, alguma coisa como um ORGÃO COMPLEMENTAR do ator, que era seu “proprietário”. Quanto àqueles que utilizei, em grande quantidade, na encenação da Balladyna de Slowacki, eram DUPLOS dos personagens vivos, como se fossem dotados de uma CONSCIÊNCIA superior, alcançada “depois da consumação de sua própria vida”. Esses manequins já estavam visivelmente marcados pelo selo da Morte.

8. O manequim como manifestação da realidade mais trivial. Como um procedimento de transcendência, um objeto vazio, um artifício, uma mensagem de morte, um modelo para o ator.

O manequim que utilizei, em 1967, no teatro Cricot 2 (La poule d’eau) foi, depois do eterno Peregrino e das Embalagens humanas, o próximo personagem a entrar naturalmente em minha Coleção, como um outro fenômeno de apoio a essa convicção arraigada em mim há muito tempo, de que somente a realidade mais trivial, os objetos mais modestos e mais desdenhados, são capazes de revelar, numa obra de arte, seu caráter específico de objeto.
Manequins e figuras de cera sempre existiram, mas mantidos à distância, à margem da cultura admitida, nas barracas dos mercados, nas tendas suspeitas dos mágicos, longe dos esplêndidos templos da arte, olhados como curiosidades desprezíveis, boas apenas para satisfazer o gosto do populacho. Mas por essa razão, são eles que conseguem – bem mais que as acadêmicas peças de museu – , no tempo de um breve olhar, levantar um canto do véu.
Os manequins têm também um gosto de pecado – de transgressão delituosa. A existência dessas criaturas feitas à imagem do homem, de uma maneira quase sacrílega e quase clandestina, fruto de procedimentos heréticos, traz a marca desse lado obscuro, noturno e sedicioso da caminhada humana, o sinal do crime e dos estigmas da morte, ao mesmo tempo que da fonte de conhecimento. A impressão confusa, inexplicável, de que é por meio de uma criatura com aspectos enganosos de vida, mas privada de consciência e de destino, que a morte e o nada enviam sua mensagem inquietante – é isto que nos causa esse sentimento de transgressão, ao mesmo tempo de rejeição e atração. Exclusão e fascinação.
O ato de acusação esgotou todos os seus argumentos. O primeiro a oferecer o flanco aos ataques foi o próprio mecanismo dessa ação, levianamente considerada um fim em si mesma, e desde então relegada à condição das formas medíocres da criação artística, colocada no mesmo saco que a imitação, a ilusão enganadora, destinada a abusar do espectador, como as imposturas do manipulador de feira, como os artifícios ingênuos que escapam aos conceitos da estética, como o uso fraudulento das aparências e as práticas de charlatanismo. E, para acrescentar algo mais, juntaram-se ao processo as acusações de uma filosofia que, desde Platão, e muitas vezes ainda hoje, estabelece como finalidade da arte revelar o Ser e sua espiritualidade, em lugar de chafurdar na concretude material do mundo, nessa fraude das aparências que representa o nível mais baixo da existência.
Não penso que um MANEQUIM (ou uma FIGURA DE CERA) possa ser o substituto de um ATOR VIVO, como queriam Kleist e Craig. Seria fácil e ingênuo demais. Eu me esforço por determinar as motivações e o destino dessa entidade insólita, surgida inesperadamente em meus pensamentos e em minhas ideias. Seu aparecimento combina-se à convicção, cada vez mais forte em mim, de que a vida só pode exprimir-se na arte pela falta de vida e pelo recurso à morte, por meio das aparências, da vacuidade, da ausência de qualquer mensagem. Em meu teatro, um manequim deve tornar-se um MODELO que encarna e transmite um profundo sentimento da morte e da condição dos mortos – um modelo para o ATOR VIVO.

9. Minha interpretação da situação descrita por Craig. O aparecimento do ator vivo, momento revolucionário. A descoberta da imagem do homem.

Tiro minhas considerações das fontes do teatro; mas realmente elas se aplicam ao conjunto da arte atual. Há motivo para pensar que a descrição, imaginada por Craig, das circunstâncias em que o ator surgiu, por ser uma análise terrivelmente acusadora, devia servir a seu autor como ponto de partida para as ideias relativas à Supermarionete. Ainda que admire o desprezo orgulhoso professado por Craig e suas diatribes apaixonadas – sobretudo quando em confronto com a decadência total do teatro contemporâneo –, e ainda que faça minha a primeira parte de seu credo, em que ele nega ao teatro institucionalizado qualquer razão de existir no plano da arte, devo tomar distância em relação às conhecidas soluções que ele adotou para o ator. Pois o momento em que um Ator aparece, pela primeira vez, diante de um Público (para empregar o vocabulário atual), parece-me um momento revolucionário e de vanguarda. Por isso vou tentar criar e fazer “entrar na história” uma imagem oposta, em que os acontecimentos terão um significado inverso.
Do círculo comum dos costumes e dos ritos religiosos, das cerimônias e das atividades lúdicas, saiu Alguém que tomou a decisão temerária de se destacar da comunidade cultural. Seus motivos não eram nem o orgulho (como em Craig) nem o desejo de atrair para si a atenção de todos, solução simplista em excesso. Eu o vejo mais como um rebelde, um opositor, um herege, livre e trágico por ousar ficar só com sua sorte e seu destino. E se acrescentarmos “com seu Papel”, teremos diante de nós o Ator. A revolta aconteceu no terreno da arte. Esse acontecimento ou essa manifestação provavelmente causaram grande comoção nos espíritos e suscitaram opiniões contraditórias. Certamente julgou-se esse Ato uma traição às tradições antigas e às práticas do culto; viu-se aí uma manifestação de orgulho profano, de ateísmo, de perigosas tendências subversivas; bradou-se contra o escândalo, a imoralidade, a indecência; considerou-se o homem um bufão, um cabotino, um exibicionista, um depravado. O próprio ator, relegado a uma posição exterior à sociedade, terá conquistado não apenas inimigos cruéis, mas também admiradores fanáticos. Opróbrio e glória conjugados.
Seria de um formalismo ridículo e superficial querer explicar esse ato de Ruptura pelo egoísmo, pelo apetite de glória ou por uma tendência inata para a exibição. Devia tratar-se de um ato mais considerável, de uma Comunicação de importância capital. Tentemos representar essa situação fascinante. Um Homem havia se erguido diante daqueles que ficaram do lado de cá. Exatamente igual a cada um deles e, no entanto (em virtude de uma “operação” misteriosa e admirável), infinitamente Distante, terrivelmente Estrangeiro, como que habitado pela morte, separado deles por uma Barreira não menos apavorante e inconcebível por ser invisível, como o verdadeiro sentido da Honra, que só pode ser revelado pelo Sonho.
Assim, à luz cegante de um raio, perceberam de repente a Imagem do Homem, gritante, tragicamente clownesca, como se a vissem pela Primeira Vez, como se acabassem de ver a Si Mesmos. Foi, com certeza, uma percepção que se poderia qualificar de metafísica.
Essa imagem viva do Homem saindo das trevas, seguindo seu caminho sempre em frente, constituía um Manifesto radiante da nova Condição Humana, somente Humana, com sua Responsabilidade e sua Consciência trágica medindo seu Destino numa escala implacável e definitiva, a escala da Morte.
De espaços da Morte vestia-se esse Manifesto revelador, que provocou no público (utilizemos um termo atual) essa percepção metafísica. Os meios e a arte desse homem, o Ator (para empregar, ainda uma vez, nosso vocabulário), também se ligavam à Morte, à sua beleza trágica e terrível.
Devemos devolver à relação Espectador/Ator seu significado essencial. Devemos fazer renascer o impacto original do instante em que o homem (ator) surgiu pela primeira vez diante de outros homens (espectadores), exatamente igual a cada um de nós e, no entanto, infinitamente estrangeiro, muito além da barreira que não pode ser ultrapassada.

Tadeusz Kantor - foto no site teatrojornal.com.br


10. Recapitulação

Ainda que suspeitem de nós e nos acusem de alimentar escrúpulos sem propósito caçaremos nossos preconceitos e nossos medos inatos e, para melhor sitiar a imagem, visando eventuais conclusões, fincaremos as balizas dessa fronteira que tem nome: A CONDIÇÃO DA MORTE pois é o marco mais avançado, não ameaçado por conformismo, da CONDIÇÃO DO ARTISTA E DA ARTE.
... essa relação particular
desnorteante e atraente ao mesmo tempo
entre os vivos e os mortos
que, outrora, quando ainda vivos,
não davam espaço
a espetáculos inesperados
a divisões inúteis, à desordem
Não eram diferentes
e não assumiam ares de grandeza
e, por conta dessa feição banal
mas importante, como se verá,
eram simplesmente, normalmente, respeitosamente
não perceptíveis.
E eis que agora, de repente,
do outro lado, diante de nós,
causam surpresa
como se os víssemos pela primeira vez
expostos ao olhar, numa cerimônia ambígua:
honrados e rejeitados ao mesmo tempo
irremediavelmente outros
infinitamente estrangeiros, e ainda,
de certa forma, desprovidos de sentido
não levados em conta
sem a menor esperança de ocupar um lugar
pleno nas texturas de nossa vida
acessíveis, familiares, inteligíveis
apenas para nós,
mas para eles sem sentido.
Se estamos de acordo que o traço dominante
dos homens vivos
é sua aptidão e sua facilidade
para manter múltiplas relações vitais
é somente diante dos mortos
que surge em nós
a consciência repentina e surpreendente
de que essa característica essencial dos vivos
só é possível
por sua falta total de diferenças
por sua banalidade
por sua identificação universal
que demole impiedosamente
toda ilusão do diferente ou do contrário
pela qualidade comum, aprovada,
sempre em vigor
de se manterem indiscerníveis
Somente os mortos são
Perceptíveis (para os vivos)
obtendo assim, pelo preço mais alto,
seu estatuto próprio
sua singularidade
sua SILHUETA resplandecente

quase como no circo.

domingo, 4 de dezembro de 2016

PACTO - de Ramón María del Valle-Inclán

Ramón María del Valle-Inclán - foto internet

No sábado, dia 05/12/2016, realizamos em nossa sede no Campeche, em Florianópolis, uma edição do evento "Encontro com o Dramaturgo", organizado pelo professor da UDESC Stephan Baungartel em parceria com o nosso grupo. Nesse dia recebemos o dramaturgo Raúl Cortes que nos presenteou com o seu conhecimento sobre um dos mais importantes dramaturgos da Espanha: Ramón María del Valle-Inclán. Ficamos tão encantados com tudo o que ouvimos que decidimos unir forças e realizar uma leitura dramática de um de seus textos - LIGAZÓN - para apresentar ao nosso público no encontro seguinte, a ser realizado em dezembro.
Foi um trabalho corrido, pois o texto ainda não havia sido traduzido para o português e tínhamos pouco tempo. Montamos uma força tarefa na qual nossos diretores Margarida Baird e José Ronaldo Faleiro traduziram o texto. Contamos ainda com a participação especial de um frequentador de nosso espaço e professor de espanhol - Rafael Paniagua - para, junto com a nossa diretora Claudia Venturi, fazer a revisão da tradução. Iniciamos os ensaios com a direção de Raúl Cortes, nosso convidado espanhol, quem nos apresentou o dramturgo.
Então, finalmente, na sexta-feira, dia 02/12/2016 realizamos a leitura dramática do texto PACTO, de Valle-Inclán, tendo no elenco os artistas do Círculo Artístico Teodora Claudia Venturi, Evandro Teixeira, José Ronaldo Faleiro e Margarida Baird. Ainda contamos com a participação especial da estudante de Teatro Naiara Bertolli. E, neste momento, compartilhamos o texto em português, para que outras pessoas também possam estudá-lo e e se divertir!

Boa leitura!

Encontro com o Dramaturgo, dia 05/12/16, no momento da decisão por montar a leitura.
Carlos Fante, Margarida Baird, Raúl Cortes, Evandro Teixeira e Claudia Venturi
Foto: Silvia Venturi

Ramón María del VALLE-INCLÁN 

PACTO
AUTO PARA SOMBRAS

do Retábulo da Avareza, da Luxúria e da Morte
Espasa Calpe, Madrid, 1961, 7ª Ed., 1996


Tradução de Margarida Baird e José Ronaldo Faleiro, com revisão de Rafael Paniagua e Claudia Venturi.

Personagens
A Hospedeira (Claudia Venturi)
A Raposa (Margarida Baird)
A Mocinha (Naiara Bertolli)
O Afiador (Evandro Teixeira)
Um Vulto de Manto e Capuz
Rubricas (José Ronaldo Faleiro)

       (Luar. A taberna reproduz exatamente o caixilho luminoso de sua porta na escuridão de um caramanchão. Na margem do muro, a lua se espelha nas águas do estábulo onde o gado bebe. Na porta iluminada se delineia a sombra de uma jovem. Olha o campo gramado irradiado com uma estrela de caminhos. Colada ao muro, pelo fio que as telhas projetam, uma sombra – cajado e manto – percebe com passos trôpegos, seu tênue relevo. A sombra da raposa se dirige à Mocinha.).

A RAPOSA - Derramas teu sal para todos! Vais me dizer que tens para todos.
A MOCINHA - Que ideia estapafúrdia!
A RAPOSA - Se por consideração te calas, eu assino o texto, que com a verdade não condeno minha alma.
A MOCINHA - Tia, deixe esses tormentos!
A RAPOSA - Podias ser mais orgulhosa. Não te olhas no espelho?
A MOCINHA - Quando vou à fonte.
A RAPOSA - E o espelhinho de tua alcova, não te diz nada quando te deitas?
A MOCINHA - Não me vejo quando durmo.
A RAPOSA - Tens uma lábia! Olha, me dá uma taça de licor de especiarias.
A MOCINHA - Grande ou pequena?
A RAPOSA - Se me medes a consciência, me dá uma mediana. Onde está tua mãe?
A MOCINHA - Lá dentro.
A RAPOSA - Vou vê-la agora. Não retires a taça. Tua mãe, se lhe der na telha, é capaz de convidar-me. Vem! Fiquemos à luz do luar. Vem! Vais ficar pasma com uma gargantilha de pérolas e corais!

                    A Raposa apalpa a bolsa, e sob os raios da lua abre um estojo: suspende a gargantilha no gancho dos dedos, e brinca com ela, procurando seu brilho.

A MOCINHA - Como é bonita!
A RAPOSA - Veio do Porto. Vamos ver como fica em ti!
A MOCINHA - De noite não brilha.
A RAPOSA -   Fica com ela e faz a comparação de dia.
A MOCINHA - Podem roubá-la de mim.
A RAPOSA - Dorme com ela.
A MOCINHA - Provocando o ladrão para que me degole.
A RAPOSA- Deixa eu por em ti. Sim, te dá realce! Pena não ter um espelhinho, para te veres!
A MOCINHA - O que vejo, tia, é o disfarce que você traz. Guarde a gargantilha, que um laço me volteia a garganta.
A RAPOSA - Tem juízo e não fales sem discernimento. Hoje, és uma rosa!... Amanhã, uma pústula, uma convulsão, um ar tísico, em último caso, os anos te deixam murcha! Tem cabeça! Podes brilhar como uma rainha! Nem todos os dias são iguais! Hoje, te cerca um grande homem que te enche a mão de ouro, amanhã não o tens.
A MOCINHA - Para que esse homem me quer? Para amiga, e quando se cansar me deixe?  Não estou aqui para ser jogada!
A RAPOSA - És muito faladeira! Ser jogada! Vestirias sedas! Fica com a gargantilha e não a desdenhes!
A MOCINHA - Pois sim que faço isso!
A RAPOSA - Estou tonta com a soberba que demonstras! Bem que tua mãe te deu melhor educação! Com a consideração que ela tem nunca aprovaria essa conduta com um homem de posses! Filha, tu não te conduzes pela cabeça! Vou encontrar tua mãe. Ela tem experiência e sabe o que significam trabalhos e mágoas.
A MOCINHA - O que você maquina não há mãe no mundo que resolva sem contar com sua filha.
A RAPOSA - Tua mãe sabe o que é mais conveniente para ti.
A MOCINHA - Se eu me negar, que pode minha mãe fazer? O que? Enfiar o namoro na alcova? Dormirei com as tesouras escondidas debaixo do travesseiro!
A RAPOSA - Deliras! Estás caidinha por alguém que não te merece. Tens amor e com tais desvarios logo o descobres! Olha, menina, o amor é sujeito muito passageiro.
A MOCINHA - Para mim, o ar!

                       A Raposa entra na taberna, com um caminhar titubeante, apoiada no cajado. A Mocinha, em sinal de menosprezo, canta sobre o umbral. Cães latem ao longe e a sombra de um moço afiador se projeta sobre a estrela dos caminhos da lua.


Raúl Cortes, dramaturgo espanhol e diretor da leitura
Foto: Silvia Venturi


A MOCINHA - (cantando)
                    Me disse, me disse
                    Que fosse sua amiga!
                    Eu lhe fiz, lhe fiz
                    Lhe fiz a figa
O AFIADOR - Afio tesouras e navalhas! Mocinha, queres que limpe a ferrugem das tuas tesouras. As deixarei de prata!
A MOCINHA - E o que queres em troca?
O AFIADOR - Um abraço me deixa contente.
A MOCINHA - Vives com esses pagamentos?
O AFIADOR - Qual melhor?
A MOCINHA - E o que fazes quando te recusam tal pagamento?
O AFIADOR - Troco-o por moedas.
A MOCINHA - Então, faz a conta e afia as tesouras.
O AFIADOR - Sai ao luar para eu te ver bem e te direi os milhares que valem em moeda o preço proposto.
A MOCINHA - Pela minha cara hás de cobrar a conta? Sou mais feia que uma coruja recém-nascida.
O AFIADOR - A lua não disse isso.
A MOCINHA - A lua é uma enganadora!
O AFIADOR - Fazem um casal!
A MOCINHA - Nunca me viste até hoje e já me pões defeito!
O AFIADOR - Sem nunca te ter visto, já me eras conhecida.
A MOCINHA - Me acontece o mesmo.
O AFIADOR - Dá-me as tesouras, mocinha.
A MOCINHA - Toma, e mostra o que sabes fazer, infeliz.
O AFIADOR - Ficarão como prata.
A MOCINHA - Faz-lhes bom fio e assegura-lhes o eixo.
O AFIADOR - As deixarei para ti como para a Rainha da Espanha!
A MOCINHA - Lustra-as e então te convido para um copo de anisete.

                      Ao luar, gira em sombra a roda do moço afiador: o aço faz saltar chispas da pedra. A MOCINHA atenta e noturna, sobre o vão luminoso da porta, faz saltar na palma da mão, uma moeda negra.

O AFIADOR - Mocinha, guarda a moeda. Já que recusas o abraço, vou embora sem paga.
A MOCINHA - Que galanteador és!
O AFIADOR - Galanteria do caminho, que conduz a esta porta. Vendo teu garbo, o que me resta senão te impressionar!
A MOCINHA - Sedutor.
O AFIADOR - Tão ótimas, mocinha, vou te deixar as tesouras, que não terás alma para negar-me o prêmio!
A MOCINHA - Nem em sonhos!
O AFIADOR - Então, guarda a moeda. Beberei em tua companhia o copo de anisete.

                       O AFIADOR, sobre o joelho da calça, dava o último brilho nas tesouras: brincava com elas cortando um raio de lua: tornava a passá-las pela perna da calça.

A MOCINHA - Que não fiquem muito duras.
O AFIADOR - Para cortar no ar um cabelo, ficaram, menina.
A MOCINHA - Dirás que te devo?
O AFIADOR - Falei.
A MOCINHA - Então, vou te dar o copo de anisete. Ou tens preferência por outra bebida?
O AFIADOR - A que gostares mais.
A MOCINHA - Bom conquistador és! Olha que passam espinhos por esta porta! Ganhas de todos!
O AFIADOR - E esse mérito, não te obriga a uma recompensa?
A MOCINHA - Bebes o copo, te libertas e, quando deres a volta ao mundo, te responderei.
O AFIADOR - Essa roda que pintas tão disforme, a percorro em menos de um credo.
A MOCINHA - Nem que tivesses a bota de sete léguas!
O AFIADOR - Para essas viagens me suspendo no rabo de um amigo.
A MOCINHA - Belas amizades tens!

                        A MOCINHA desapareceu do vão luminoso: se ouve sua voz de dentro. O AFIADOR espera, já carregado com o candeeiro de sua engenhoca: a roda projeta seu círculo negro no cruzamento iluminado das três sendas. Rebolando, com o copo na mão, A MOCINHA agora saía da taverna. 

O AFIADOR - Menina, se queres que eu beba, antes, molharás o bico.
A MOCINHA - Já o molhei.
O AFIADOR - Quero ver.
A MOCINHA - Te darei esse gosto.

                  A MOCINHA molha os lábios no copo e o oferece ao galanteador que levanta a quimera de seu tanque no claro luar.

O AFIADOR - Beberei teus segredos.
A MOCINHA - Hoje, não os tenho.
O AFIADOR - Os de amanhã.
A MOCINHA - Gabola, mais que gabola!
O AFIADOR - Até a volta, menina.


Atores preparados para o início da leitura:Margarida, Evandro, Naiara e Claudia
Foto: Silvia Venturi


              Afasta-se. O negro utensílio, sobre os ombros do errante, destaca sua roda com estranha sugestão de enigmas e, casualidades: sob o céu de estrelas, na oração sussurrante da noite aldeã, se desvanece. Saem na penumbra lunar do parreiral, a dona e a tia mal intencionada, duas sombras embriagadas com gagueira, esgares e vaivém.

LA RAPOSA - Cintilam as estrelas, comadre! Este    relaxamento da vida, há que alegrá-lo!
A HOSPEDEIRA - Do lobo, um pelo.
LA RAPOSA  -  Comadre, como está bem conservada!
A HOSPEDEIRA - É só aparência.
LA RAPOSA -  Comadre, a tenho na alma!
A HOSPEDEIRA - Comadre, peça-me a vida!
LA RAPOSA -  Memória a peço.
A HOSPEDEIRA - Se sou esquecida, que eu morra!
LA RAPOSA - Turulú! Vá preparando uma empanada para o                        alvoroço.
A HOSPEDEIRA - Empanada de carne e vinho branco de                            Rueda!
LA RAPOSA -  Cafezinho e anisete!
A HOSPEDEIRA - Um cozimento de sálvia é melhor para o                          cansaço
LA RAPOSA -  O cafezinho não me negue, comadre!
A HOSPEDEIRA - Comadre, quando chegar o momento!
LA RAPOSA - Você esteja pronta para zurrar sapateiros, a você corresponde este ministério. Comadre, se esquece de que meus passos vão encher-lhe a casa, lhe quebro a sorte.
A HOSPEDEIRA- Tenho um chifre no telhado.
LA RAPOSA - Vale pouco.
A HOSPEDEIRA - Não se aborreça comigo, comadre!
LA RAPOSA - Turulú! A torto e a direito.
A HOSPEDEIRA - Pelas boas, se for o caso.
LA RAPOSA - E pelas más! Minha saia é muito negra!
A HOSPEDEIRA - Comadre, somos da arte!
LA RAPOSA - Você é das que voam?
A HOSPEDEIRA - Ao meio-dia de sábado, monto na vassoura, e pelos céus. Arcos de sol! Arcos de lua!
LA RAPOSA - Você está bêbada!
A HOSPEDEIRA - Bêbada porque estou em vantagem.
LA RAPOSA - A mim, todas as noites a assombração me visita!
A HOSPEDEIRA - Você está sonhando!
LA RAPOSA - Tão real quanto o que você diz! Comadre, qual é o meu caminho? A lua me cega.
A HOSPEDEIRA - A noite atordoa tudo.
LA RAPOSA - Me guio por aquela estrela grande.
A HOSPEDEIRA - Comadre, me deixa um mandato.
LA RAPOSA - Te levo na alma, irmã.
A HOSPEDEIRA - Irmã, pede-me a vida.

                            A COMADRE – cajado e manto – se perde na noite estrelada. Cães ladram ao longe. Sentada à beira da manjedoura, trêmula de brilhos, se alheia com desdenhosa cantoria A MOCINHA. A mãe cruza os braços.

A MOCINHA - (canta) Por ver-me, por ver-me,
                           Por ver-me a liga
Me disse, me disse
Para ser sua amiga.
A HOSPEDEIRA - Qual foi o conselho que a comadre te                              deu?
A MOCINHA -       Qual a minha resposta?
A HOSPEDEIRA - Por que não recebeste o presente?
A MOCINHA -  Não me apetecem aquelas coisas.
A HOSPEDEIRA - Ah, aí estás para te atirares.
A MOCINHA -  Pelo mesmo.
A HOSPEDEIRA - Não te envergonhes! É atirar-se pagar com prazer um fino presente, e não o é ficar bico a bico com cada um que apareça?
A MOCINHA - Com isso nada perco.
A HOSPEDEIRA - E para aceitar um mimo por estima, vais dizer que te jogas no chão? Que eu caia morta, se sabes o que é recato!
A MOCINHA - Você não é minha professora!
A HOSPEDEIRA - Deixa de insolência e usa de bom senso.
A MOCINHA - O que é meu, é meu.
A HOSPEDEIRA - Tu não tens nada.
A MOCINHA - Tenho meu corpo.
A HOSPEDEIRA - Nem ele é teu.
A MOCINHA -  É o que veremos.
A HOSPEDEIRA - Ora! Aqui está a gargantilha que desprezas, vê! Pérolas e corais!
A MOCINHA - Ai, minha mãe! Você com pouco fica cega!
A HOSPEDEIRA - Quero o teu bem. De onde esperas uma conveniência igual? De onde? Ignoras o quanto representa um amigo que não quer dinheiro, apenas. Se ouves tua mãe, podes ver-te abonada.
A MOCINHA - Isso não me impressiona, nem que venha com ouro pulando na palma da mão!
A HOSPEDEIRA - Negra de alma, não olhas por ti, nem pela velhice de quem teve tanto trabalho para criar-te! Pensa na tua mãe, já que não pensas em ti, desastrada!
A MOCINHA - Chega, é demais! Uma gargantilha de pérolas, para quem tanto tem, nada representa. Quanto a perder-me que seja em carruagem e cuidadosamente. Com uma gargantilha não fico cega, e antes me entrego por gosto, para perder-me.
A HOSPEDEIRA - Libertina! Relaxada! Desonesta!
A MOCINHA - Tudo isso!
A HOSPEDEIRA - Não me fales relutante, grande pervertida, porque te tiro o couro. Patife! Mais que patife! Quando podias esperar sorte maior?
A MOCINHA - Sorte, com um ponto que muda como uma biruta.
A HOSPEDEIRA - Para segurar esses homens está a arte das mulheres.
A MOCINHA - E se me faltasse tal arte, quem me repararia? Essa avaria a mim não me acontece.
A HOSPEDEIRA - Irás onde tua mãe te ordena.
A MOCINHA - Meu corpo é meu!
A HOSPEDEIRA - Escória, então adias tua boa ventura! Então a repeles!
A MOCINHA - Se você mete esse cortejo na alcova, se encontrará o que deve ser encontrado.
A HOSPEDEIRA - Ao menos recebe seu presente e troca algumas palavras com ele pela janela! Põe a gargantilha para que se lhe ocorre aparecer a verá em ti, e não me provoques!
A MOCINHA - Se lhe apetece meu porte, que vá e venha e que se incomode.


José Ronaldo na leitura das rubricas
Foto: Silvia Venturi

                       A mãe se metia saguão adentro, e no perfil do cocho a filha continuava cantando. Lentamente, a lua se obscurecia com lutos errantes. A sombra de um cachorro branco cruzou o campo. Permanecia, inteiro na noite, o cantar, abolida a figura de A MOCINHA, na escuridão noturna.
                    Os passos do afiador sobre o limite do campinho eram assombrados de ecos.

A MOCINHA - (canta)
                    Sobre um pé a volta
                    Dos mundos dou!
                    Quando passo, fico
                    Quando fico, vou!
O AFIADOR - Me acolhes com um bom encantamento!
A MOCINHA - Já fizeste a volta ao mundo?
O AFIADOR - De cabo a rabo.
A MOCINHA - Pelo ar?
O AFIADOR - Certamente pelo ar!
A MOCINHA - (canta)
                    Quando passo, fico
                    Quando fico, vou!
O AFIADOR - Menina, te transformaste em sereia e cantas de noite para atrair os caminhantes?
A MOCINHA - Achas isso?
O AFIADOR - Por acaso!
A MOCINHA - Lamentarias se eu fosse uma sereia?
O AFIADOR - Lamentaria, hás de ter belas pernas e as sereias embaixo não usam calçolas.
A MOCINHA - Tens certeza?
O AFIADOR - É o que dizem.
A MOCINHA - Pois então não devo ser sereia.
O AFIADOR - Isso ganha quem te levar.
A MOCINHA - Não sou sereia, mas, sem sê-lo, nestas águas do cocho, desde que te foste, tenho visto teus passos refletidos.
O AFIADOR - Sem faltar um só dos seus tropeços?
A MOCINHA - Nenhum só.
O AFIADOR - E também lês minha mente?
A MOCINHA - Aí me detenho.
O AFIADOR - Onde, recordando-te, me sentei para fumar um cigarro? Onde foi? Menina, se acertas, te proclamo bruxa!
A MOCINHA - Na primeira das pontes estiveste lembrando de mim.
O AFIADOR - Certo! Estive ali me lembrando de ti, apoiado na mureta, tão desligado na corrente com o lume do cigarro na boca.
A MOCINHA - Te digo mais: passaste um susto.
O AFIADOR - Certo!
A MOCINHA - Apareceu um cão e te cravou os dentes no ombro. Olha só a roupa rasgada no ombro.
O AFIADOR - Isso te deu luzes!
A MOCINHA - O que é o destino! Não esperava voltar a ver-te! Creio, moço, como deliberação das estrelas.
O AFIADOR - E do raivoso que me apareceu no caminho.

                        Voava uma nuvem sobre a lua, e no roxo escuro da parreira, na esquina do tapume, apagavam seu vulto, os vultos de O AFIADOR e de A MOCINHA. As vozes abriam círculos alternados no vapor das sombras.

A MOCINHA - Tudo emana daquilo.
O AFIADOR - Onde te achas? Onde estás que não te vejo?
A MOCINHA - Perto de ti estou.
O AFIADOR - Nem te ver, nem te apalpar.
A MOCINHA - Pus um anel encantado. Quando passaste a primeira vez, me pediste um abraço. Vem tê-lo. Duvidas? Por que te recusas?
O AFIADOR - Menina, se transformou em ti a serpente!
A MOCINHA - Antes, sereia!... Agora, serpente! O que serei daqui a pouco?
O AFIADOR - Minha perdição, se queres. O Diabo maquinou este enredo para contá-lo à outra mulher, que me espera vestida e composta.
A MOCINHA - Recomenda-lhe o segredo a Satanás.
O AFIADOR - Diabo, te determino. Do que se passar entre esta moça e quem vos fala, boca calada, ou te arrebento um chifre.
A MOCINHA - Que sagaz!
A VOZ DA MÃE - Deixa de buliço! Te dá ao respeito! Vem para dentro! Encosta a porta sem passar o ferrolho, ainda pode vir alguém esta noite. Estás me ouvindo?
A MOCINHA - Ai, minha mãe, não remexa a rixa passada!
A HOSPEDEIRA - Entra já, se não queres me ver sair com uma vassoura!
O AFIADOR - Bom trato te dá a velha!
A MOCINHA - Quer me arruinar com um judeu     rico.
O AFIADOR - Que tem bom gosto!
A MOCINHA - Por mais que esteja procurando, não o encontrará... Tem outro na frente... Espera-me, que te falarei pela janela.
O AFIADOR - És contra?
A MOCINHA - Minha flor não a dou por dinheiro.
O AFIADOR - Olé!
A MOCINHA - O que tiver de ser levado, será levado. Mas não! Ainda falarei contigo pela janela. Espera-me!

                  No vão luminoso da porta se destaca, pela cor preta, empunhando uma vassoura, a mulher da taberna. O moço afiador se esconde na sombra.

A MOCINHA - (canta)
                    Morro de rir!
De rir eu morro!
A HOSPEDEIRA - Esta noite vou te moer, sua rebelde!
A MOCINHA - É pouco para me irritar!
A HOSPEDEIRA - Vai para dentro, e não me condenes! Onde se meteu o patife com quem tagarelavas? Sei que estás me ouvindo, poeira do caminho! Que foi que perdeste nesta porta? Ficas calado? Se nada perdeste, dá o fora. Vai para dentro, relaxada. Tranca a porta. Se alguém vier, baterá. Ficarei atenta.


Liliana conduzindo a projeção de sombras
Foto: Silvia Venturi


                  Ouve-se o ferrolho correr. A mãe e a filha brigam por detrás da porta. O vulto do moço afiador sobressai, sigiloso, do cercado. Bate a vassoura, grita a velha, chora A MOCINHA. O moço afiador escuta, com a roda no ombro. A briga se distancia, some, recrudesce, se extingue. Perdura a lamúria da MOCINHA: Enxugando os olhos, aparece à janela.

A MOCINHA - Ouviste a velha?
O AFIADOR - Alguma palavra me chegou.
A MOCINHA - E que conjectura fizeste?
O AFIADOR - Que quer dinheiro.
A MOCINHA - Queres tornar-me tua?
O AFIADOR - Não me dês água na boca se eu não puder prová-la!
A MOCINHA - Responde!
O AFIADOR - Não me animes, que desmaio!
A MOCINHA - Serás o primeiro que me tenha!
O AFIADOR - Para que me cegas?
A MOCINHA - Ficas cego por tão pouco?
O AFIADOR - És flor de canela!
A MOCINHA - Descobre o ombro, e mostra-me o sangue que sai de ti.
O AFIADOR - Olha.
A MOCINHA -  Chega!
O AFIADOR  -  Que queres?
A MOCINHA -  Beber-te eu quero!
O AFIADOR - Por Cristo, pareces uma bruxa!
A MOCINHA  - E sou! Beberei o teu sangue e beberás o                            meu.
O AFIADOR - Que sacramento! Perdão, menina, se                                    enfraqueço, mas já estou com cabresto.
A MOCINHA - És casado?
O AFIADOR - Os proclamas correm em Santa Maria de Todo o Mundo.
A MOCINHA - Não te consideras capaz de beber o meu sangue e dar-me de beber o teu?
O AFIADOR -  A cabeça, menina, me fizeste ficar tonto.
A MOCINHA - Sabes o que é um pacto?
O AFIADOR - Algo me atinge.
A MOCINHA - E estás de acordo?
O AFIADOR - Para o que ordenares.

                A MOCINHA, com gesto cruel, que lhe crispa os lábios e      lhe aguça os olhos, crava a tesoura na própria mão e aperta a boca do rapaz com a palma ensanguentada.

A MOCINHA - Beija! Morde! Me uno contigo!
O AFIADOR - Que arte de namorar, a tua!
A MOCINHA - Descobre o ombro: é a minha vez de beber o teu sangue!
O AFIADOR - Exerces bruxaria?
A MOCINHA -       Bruxa com Paulina!
O AFIADOR - Pois não recuo!
A MOCINHA - Então entra e desfaz a cama.

O errante tira a roda de si, e mete a perna pela janela. A MOCINHA apaga a luz na alcova. A MOCINHA. Um vulto ataca, de manta e escopeta, atravessa o pasto e bate à porta. O ferrolho range. A folha se entrefecha, e o vulto desliza furtivo pelo vão. Uiva um branco mastim no pasto. A MOCINHA atravessa pelo claro da janela. Levanta o braço. Quebra o raio de lua com o brilho da tesoura. Tumulto de sombras. Um grito, e o baque de um corpo no chão. Tenso silêncio. Pelo vão da janela, quatro braços desprendem o corpo de um homem com a tesoura cravada no peito. Ladram os cachorros da aldeia.

Grupo reunido após a leitura: Margarida, Raúl, Liliana, Claudia, Naiara, José Ronaldo e Evandro
Foto: Silvia Venturi